terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Análise

Sinceramente? Não agüento mais te olhar...


Você não faz idéia do tanto que eu sonhei pra você, de todos os meus planos, de tudo que você jogou fora, com essa sua inconseqüência.


Sua idiota. Sempre escolhendo os caras errados, que te faziam mal. E nem adiantava falar, porque toda vez que você achava que estava amando, ficava burra, cega e surda. Nunca ia ouvir a voz da razão.


Besta. Perdeu tanta oportunidade, podia ter ido fazer aquele curso lá fora, lembra? E aquele estágio que te ofereceram na tal empresa que você sempre sonhou em trabalhar? Desde que se entendia por gente, dizia que um dia ia fazer parte daquilo... E deixou passar. Tudo porque o tal namorado da vez não queria se mudar. E nasceu colada com o infeliz por acaso? Tava grudada pelo cordão umbilical?


Às vezes eu tenho vontade de te dar uma surra. Tão inteligente e tão tapada... Como pode?


Você sempre desenhou tão bem, mas nunca quis levar isso pra frente... Podia ter sido artista. Podia pelo menos ter transformado isso num hobby, de repente você seria menos irritada... E menos irritante... Mas nem pegar num lápis você pega mais... O que foi que te aconteceu?


E as suas comidas? Que maravilha... Todo final de semana um prato diferente, criativa, talentosa... Ninguém nunca entendeu de onde você tinha tirado aquilo, porque na família ninguém te ensinou. Aliás, ninguém sabia cozinhar que nem você pra ter te ensinado a fazer coisas tão espetaculares. E hoje em dia, nem um ovo você frita. Já fez amizade com todos os entregadores e atendentes de restaurantes possíveis. Afinal, sem eles você morreria de fome, confessa. Quem diria...


Você era a mais bonita, a mais inteligente. Era até a mais legal, ninguém poderia discordar disso... Todos gostavam de você, muitos queriam ser você, pra falar a verdade...


Acho que só você não queria muito ser você... E até hoje eu não sei o porque.


Só sei que não agüento mais te olhar, não agüento mais me ver, seu rosto, no espelho...

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Encasulamento

Aquele deveria ser o dia mais feliz de sua vida. Um dia cuja perfeição poderia ser maculada tão somente pela sua ansiedade.


Aquele deveria ser o homem da sua vida. A pessoa certa. Sem sombra de dúvidas, o único que poderia completá-la, amá-la e respeitá-la, mesmo nos momentos difíceis.


Mas ela não estava certa. A cada passo que dava em direção ao altar, mais vontade sentia de apertar o braço de seu pai, de frear e voltar. E se ela não fosse feliz para sempre? Sequer podia dizer que estava feliz então, quanto mais depois... Anos e anos depois.


Ainda dava tempo de voltar, o padre ainda não havia dito “pode beijar a noiva”.


E se o amor acabasse antes da hora? Será que ele estava lá, pra começo de conversa?


E se faltasse respeito? Pior... E se o respeito fosse pura hipocrisia, na tentativa de evitar brigas que não pudessem jamais ser reparadas depois?


E se a felicidade não fosse suficiente?


E se a tristeza fosse maior que tudo?


E se a riqueza os cegasse e os impedisse de enxergar as coisas realmente importantes?


E se a pobreza fosse tanta e tamanha que os levasse a um ressentimento mútuo?


E se lhes faltasse saúde?


E se a doença tornasse um deles um transtorno para o outro?


E se a morte não os separasse, mas a própria vida? As coisas mudam, não é? As pessoas mudam...


Ela reconheceu poucos rostos no percurso, sentia como se o oxigênio fosse lhe faltar antes que conseguisse chegar ao final. Viu amigos, antigos casos e até ex-namorados com quem mantivera um bom relacionamento.


A cerimônia foi um grande borrão. Ela tinha a impressão de que precisaria que a cutucassem para que soubesse a hora de falar. Como uma atriz que esquece a fala na estréia da peça, na cena mais importante, quando toda a iluminação do palco se concentra sobre ela. Mas parecia estar no piloto automático. Embora ausente, conseguia cumprir sua função.


O padre perguntou se alguém ali se opunha àquela união. Que falassem naquele instante, ou guardassem seus motivos consigo, calando-se para sempre.


Seria com ela? Poderia ela arrancar o véu e gritar que tinha dúvidas? Que aquele vestido estava lhe dando uma coceira impossível? E que tudo que ela mais queria naquele momento era tomar um Prozac tamanho família, ou doses cavalares de qualquer bebida alcoólica que fosse capaz de derrubá-la até o dia seguinte?


Mas ficou quieta.


E o seu silêncio ecoou ensurdecedor pelas paredes da capela, junto com todas as lamentações daqueles que consideraram inapropriado manifestar seu arrependimento, seu amor nunca declarado, ou mesmo seu amor já milhares de vezes professado.


Quem sabe... Talvez todo aquele mal estar fosse embora com o tempo...

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Nada de mim

Ela sentou pra escrever. Estava na dúvida, falar sobre o que?


Discordava que os melhores textos eram filhos da tristeza e de sentimentos ruins em geral, mas sabia que não poderia falar de felicidade. E era só disso que queria falar.


Sempre quis entender esse paradigma da inspiração estar ligada à depressão, mas faltavam-lhe argumentos para contestá-lo com embasamento teórico. Queria algo mais concreto do que “isso é uma imbecilidade sem tamanho...”.


A verdade é que as pessoas tendem a ser medíocres. A felicidade alheia incomoda. Esfrega na cara e cutuca a ferida.


A tristeza dos outros, no entanto, dialoga com qualquer uma. Sem sotaques, sem ruídos, fala tão claramente como se estivesse sussurrando delicadamente ao pé do ouvido. E dá aquela satisfação mórbida de saber que alguém está tão ou mais fudido que você...


É horrível? Mas é verdade!


Ela sentou pra escrever e contemplou novamente aquela tela vazia, amiga de tantas horas.


Decidiu abrir mão da felicidade e escrever ficção. Falou de confusão, de algo talvez triste, incômodo. Parecia que estava abrindo seu coração, mas com requintes de figuras de linguagem e toques de liberdade poética.


Escreveu em primeira pessoa, criando a ilusão de que realmente falava de si. A mesma ilusão que faz concluir que toda terceira pessoa fala de outro, conta a história alheia. Muitas vezes, até, fofoca...


Ela se pôs ali, por completo, naquela mentira contada sobre alguém, mas na sua voz, nas suas palavras. Fez-se enxergar no que não a pertencia, no que sequer conhecia. Pôs-se literariamente triste quando estava realmente feliz.


Descobriu ali sua válvula de escape e percebeu que nem todo texto precisa ser auto-biográfico...

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Os seus, os meus e os nossos...

Outro dia resolveram matar as saudades os fantasmas do meu armário. Vieram, descarados, como se nunca tivessem me deixado. Parece que sentem cheiro de felicidade. É só as coisas estarem dando certo que resolvem aparecer.

Fui educada, nada mais do que isso. Disse que estava de saída, mas eles insistiram que seria uma conversa rápida. Ficaram relembrando o passado, cada um tentando provar que tinha tido mais importância ou significado. E eu olhando pro relógio, com medo de me atrasar pro cinema. Você me esperando.

Perdi a paciência, aquele papo não me interessava em nada. Disse que tinha sido legal, que a gente se falaria... Eu te ligo ou você me telefona... Outro dia, outra hora...

Então vieram me visitar os fantasmas do seu armário. Caras de pau, assanhadas, querendo me assustar, com uma conversinha furada de que eu nunca teria com você o tanto de história que uma tinha, ou o tanto de coisas em comum que tinha tido a outra. Sirigaitas, isso sim.

Entraram sem ser convidadas e foram logo se sentando no meu sofá, amiguinhas venenosas tricotando no meu sofá...

Estavam sem pressa, acho que tinham tirado o dia só pra me tentar.

Fiz um café fresquinho e apresentei os seus fantasmas aos meus fantasmas. Deixei-os conversando e corri pra pegar o metrô.

Você já estava me esperando...