quarta-feira, 17 de abril de 2013

Nada

Mariana dormia de boca aberta. Era a coisa favorita de Caio a seu respeito. Ele aprendeu isso depois de muitas noites acordado, só olhando enquanto ela dormia.

Podia-se dizer que era uma insônia seletiva adquirida, já que Mariana odiava manifestações de carinho e esse era o único momento em que ele podia violar essa regra, que era muito mais do que clara entre eles.

Na verdade, não é que ela odiasse. Ela apenas não as considerava apropriadas para o tipo de relacionamento que tinham.

Nenhum.

Caio surgiu em sua vida logo após o fim de um namoro longo e complicado. Tanto o relacionamento quanto seu término.

Ele era famoso por ser um cara mulherengo e isso logo a atraiu. O que ela menos precisava então era drama. Tinha que ser fácil, tinha que ser leve, tinha que ser só sexo.

E foi.

E foi bom.

E foi o melhor.

E continuou sendo. Durante um ano, mais ou menos, Caio e Mariana se viram sempre que quiseram. E eles queriam muito.

Viraram melhores amigos. Ela contava pra ele sobre tudo, sem perceber toda a intimidade que já tinham. Ele chorava com ela como se fosse aquele único amigo com quem está tudo bem ser fraco.

Mariana e Caio eram muito parecidos. Riam muito sempre que estavam juntos, tinham mil piadas internas e todas as referências pra terem conversas chatas que só faziam sentido entre eles.

E o sexo.

O melhor sexo.

Mas não era apropriado em um não relacionamento que se demonstrasse carinho. Então Caio aprendeu a ficar acordado sempre depois de transarem. Mariana era do tipo que dormia em seguida. Dava as costas e apagava mesmo. E depois virava de lado. Era quando ele a observava.

Ela dormia de boca aberta.

E tinha uma mecha de cabelo que insistia em cair dentro de sua boca quando ela respirava forte. Ele gostava de tirar aquela mecha e acomodá-la bem atrás de sua orelha, só pra passar a mão delicadamente em seu rosto. De leve, bem de leve, para não acordá-la.

Até porque seu sono era leve. Especialmente esse. Ela dormia rápido, mas acordava do mesmo jeito. Essa coisa de querer se arrumar pra ir embora. Ou pra que ele fosse embora. Não era deles essa coisa de passar a noite juntos.

Caio sabia que não era nada pra Mariana. Mas já fazia tempo que a recíproca não era verdadeira.

Nunca disse nada por causa do acordo tacitamente estabelecido. Eles não eram nada. Não deviam ser nada. Ela não precisava disso.

E isso não saia de sua cabeça. Enquanto a observava dormir, tentava criar coragem pra dizer que não queria mais daquele jeito. Então Mariana fechou a boca. Era o primeiro sinal de que acordaria em seguida.

Ele fechou os olhos. Fingiu dormir.

Ela abriu os olhos. Tinha tempo que Mariana fingia dormir pra não ter que conversar com Caio depois do sexo. Ela não queria ter que contar pra ele que daquele jeito não dava mais. Que o via diferente. Queria diferente. Ela estava cansada de ser só uma grande foda?

Mariana queria ter coragem.

Pra quebrar suas próprias regras.

Ela não aguentava mais fingir.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Bens

Sempre que um relacionamento chega ao fim parece que se abrem alguns universos paralelos. Três, ao menos, com certeza. O primeiro se baseia em um. O segundo se baseia no outro. O terceiro, na falta de nome melhor, poderia ser a verdade.

Quando Lígia e Raul se divorciaram, parecia impossível imaginar um mundo em que os dois fossem o casal perfeito.

O processo demorou um tempo, mas pra quem tava de fora, foi do nada. Da noite pro dia, eles deixaram de ser melhores amigos que conversavam sobre tudo pra ser aqueles loucos que brigavam pela poltrona do escritório.

A maldita poltrona do escritório.

E nem era uma poltrona bonita. Falando muito honestamente, aquela talvez fosse a poltrona mais feia da história da decoração moderna.

Sequer era confortável.

Servia mais de cabideiro, estante e suas variantes do que como poltrona propriamente dita.

Mas lá estavam os dois brigando por ela.

Lígia e Raul se conheceram na faculdade logo se tornaram aquele casal insuportável, que parecia existir como se soubesse de algo que o resto do mundo não sabia.

Coisa de música, superaram toda barra mais pesada que tiveram.

Ou quase.

Ninguém viu acontecer. Talvez nem eles tenham visto.

Acordaram um dia brigando pela poltrona. A poltrona que ELE escolheu, aquela vadia. A poltrona que ELA comprou, aquele egoísta.

A poltrona onde ele percebeu que a amava o suficiente pra pedi-la em casamento. A poltrona em que ela disse sim. A poltrona onde ele planejou a família que teriam juntos. A poltrona em que ela contou pra ele que não podia ter filhos.

Dividiram os livros.

Dividiram os discos.

Dividiram até os amigos.

O problema era a poltrona.

Justo aquela poltrona maldita que nem combinava com nada.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Diagnóstico

Anna acordou enjoada. Na verdade, estava enjoada fazia um tempinho, mas na última semana tinha piorado bastante e naquele dia ficado insuportável.

Justo ela, que tinha fobia de hospitais, admitiu que não daria mais pra enrolar.

Precisava de ajuda profissional.

Chegou no balcão, entregou a carteirinha do plano, a identidade e explicou à enfermeira o que estava sentindo. Estava morrendo, era claro.

Talvez estivesse ali só para que o médico lhe dissesse quando, assim poderia arrumar as coisas e deixar tudo pronto.

Odiava dar trabalho.

- Anna? Anna?

- Eu! Aqui!

Não demorou muito que chamassem seu nome.

- Anna, o dr. Raul irá atendê-la. Por favor, vá com ele.

Dr. Raul. Anna não sabia se queria ser tocada por um Raul. Enfim. Ela também não queria morrer e talvez fosse o caso.

- Anna. Diga, Anna. O que você está sentindo?

- O que eu NÃO estou sentindo, né? Talvez fosse mais fácil começar por aí.

- Como preferir.

- Estou com taquicardia. E um enjoo que não passa. E volta e meia me dá uns calores, não sei de onde vem, ou pra onde vão, porque somem com a mesma facilidade com que vieram.

- E isso começou há muito tempo?

- Uns meses.

- Meses???

- Sim.

- Mas você procurou um médico só hoje?

- Não gosto de hospitais.

- Claro, faz muito sentido.

- Acho que o senhor está sendo irônico.

Mal se conheciam e ele estava sendo irônico. Homens.

- Preciso que você faça alguns exames.

- Por isso odeio hospitais.

- Bom, preciso descartar qualquer doença séria e os sintomas que você descreveu são meio genéricos.

Anna foi levada pela enfermeira para uma bateria de exames. Testaram seu coração, seu cérebro, hemograma completo, urina e até fezes.

- Anna? O dr. está com os resultados dos seus exames, pode entrar.

Como ela odiava os segundos que precediam a entrega dos exames. Especialmente considerando que eles a tinham testado até o DNA.

- Quanto tempo tenho?

- Você não tem nada, absolutamente nada.

- Como assim NADA? Mas e os enjoos, a dor de cabeça, as tonturas, as pernas bambas, o coração batendo...

Anna foi interrompida por seu celular, tocando escandalosamente um alerta de mensagem.

- Desculpe.

Enquanto botava o maldito no mudo, o médico pôde observar seu rosto corar. Aproveitou e levou o estetoscópio até seu peito e observou seu coração, disparado, pular uma batida. Ou duas.

- Namorado?

- OI? CLARO QUE NÃO!

Três. Talvez quatro.

- Hum. Definitivamente. O que você tem é só amor. Ou paixão?

- Hein? Tem certeza, dr.? Certeza que não é uma virose?

Sim. Uma virose seria bem mais fácil de tratar.

E de explicar.