sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Engano

- Cristina?

Parou. O coração engasgou, deu um soluço. Ninguém a chamava de Cristina, exceto se fosse pra brigar com ela.

Coisa de criança.

- Cristina!

Ergueu os olhos por um segundo que mais pareceu uma eternidade e reconheceu o rosto do homem de quem tentou fugir por anos.

O relacionamento passou diante de seus olhos como um filme lento e embaraçoso.

Engoliu em seco a vergonha de ter permitido que ele abusasse tanto dela por desculpas tão porcas, por flores e chocolates de que ela nem gostava.

- Não, senhor. O senhor deve ter me confundido com alguém.

Não era mentira.

A mulher que ele procurava não estava mais ali.

Ele a tinha matado tempos atrás.


sábado, 10 de agosto de 2013

Café

Juntou os grãos na palma da mão e pôs no moedor. Era a quantidade certa pra fazer café só pra ela.

Moeu fino e acomodou cuidadosamente no filtro. 

Derramou a água sem pressa enquanto lembrava do dia em que aprendeu a passar café, do jeito mais tradicional. 

Ou quase, já que seu porta-filtro era, como diziam as amigas, coisa fresca. 

Porcelana. 

Aprendeu a fazer café assim por causa delas. Se dependesse dela, fazia de qualquer jeito, menos esse. Mas elas sentiam falta de casa. E lá se fazia assim. 

Aprendeu porque sentia falta de casa também e sentar com as duas pra conversar entre um pão de queijo e outro até sair o café era o mais próximo de reunião de família que ela tinha nessa nova rotina. 

Saiu de casa por conta de trabalho e sentia pouco a falta da vida antiga. Mas quando batia saudade, maldita, ela vinha com força. 

Conheceram-se no trabalho, as três. Cada uma de um departamento da empresa, não tinham nem porque se conhecerem naquele mundo de gente e andares, naquele arranha-céu de impessoalidade. As pessoas mal se davam bom dia, mas as três se encontraram. 

Uma baiana, uma carioca e uma mineira perdidas em São Paulo. Um equívoco, foi tudo que precisaram.

Era uma tarde despretensiosa de uma quarta-feira esquisita. Daqueles dias meio feios, meio cinzas. A mãe da mineira havia mandado entregar no trabalho da filha uma peça bonita de queijo. Afinal, não era possível que aquela cidade tivesse queijo bom e ninguém merece passar tanto queijo comendo sabe-se lá o que eles entendem por queijo. 

Ninguém merece. 

O bilhete, na embalagem bem feita, dizia: "Carol, um beijo da mamãe."

Carol. 

Vocês sabem quantas Caróis existem num prédio desses? 

Pois é. 

Pelo menos três. 

Uma de cada canto do país. Nenhuma de lá. Não nesse caso. 

A mineira chamava Caroline. A carioca, Carolina. A baiana, não me perguntem como assim porque eu não sei a história, chamava Carol mesmo. Coisa de hippie, talvez. Ou não. 

O tal queijo passou por muitas mesas até achar Carol. Que achou Carolina. Que achou Caroline. Que ficou feliz. E convidou as duas pra comer queijo. 

Sentaram e conversaram e comeram queijo e tomaram café e falaram da vida e de família e de amigos e de saudade. 

O queijo virou hábito. 

A conversa virou hábito. 

O café virou hábito. 

Deixou de ser só de Carolina pra ser das três Caróis. 

Passado no filtro, do jeito que faziam em casa. Ou quase. Porque em casa não tinha aquela coisa fresca de porcelana. 

Mas era gostoso o tal café. Era delas. 

Um dia Carol conheceu Juan e foi morar em Buenos Aires. Caroline aprendeu a falar mandarim e foi arriscar a vida na China, o mercado lá tinha futuro, diziam. Carolina voltou pro Rio e foi trabalhar numa ONG. Ela sempre quis trabalhar com crianças e recebeu a proposta da vida pra desenvolver um projeto novo numa comunidade perto de onde tinha crescido. 

Era arriscado, mas ela já tinha cansado de São Paulo. 

Foram as palavras de Caroline antes de ir pra China que a empurraram. "Essa cidade está fazendo de mim alguém que eu não quero ser." 

Uma foi pro outro lado do mundo. A outra voltou pra casa. 

Ou quase. Porque a sua casa nunca tinha sido arriscada. 

As coisas mudam, né? 

Mas tem coisa que fica. 

Tipo a saudade. 

E aquela saudade tinha cheiro e vontade de café. 

Moeu os grãos, botou no filtro, acrescentou a água quente devagar. 

Os pingos tinham barulho das conversas e risadas de cada uma e todas elas naquela cozinha. 

Falavam-se cada vez menos desde que foram cada uma prum canto, mas Carolina sentia falta delas. Tinha coisa que só dava pra contar pra elas, que só tinha graça com elas. 

Estava feliz no Rio. O projeto dava certo. As pessoas eram boas e ela achava, pela primeira vez, que talvez fosse mesmo possível mudar o mundo. 

Mas só depois do café.