quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Inimigas

- E aí?

- E aí o que?

- Me conta!

- O que?

- Sobre aquela menina lá, que tava falando de você, das amigas e tal.

- Ah!

- Então?

- Sei lá.

- Parou?

- Não sei.

- Você foi lá tirar satisfação?

- Não, eu tinha um cupom pra batata frita extra naquela lanchonete perto do trabalho.

- E daí?

- Me pareceu mais importante aproveitar do que perder meu tempo com briga besta.

- Não entendi.

- Qual parte?

- Ah, até pouco tempo você tava me contando sobre o quanto ela te difamou, que você quase perdeu seu emprego por causa disso, o namorado, que sua vida tava indo pro brejo.

- Pois é.

- O que mudou?

- Eu entendi que eu não tava na quinta série.

- Oi?

- É. Não era ela que tava me causando problemas no trabalho. Ou no relacionamento. Ou na vida. Era o tempo que eu perdia com algo que deveria ser ignorado. Pensa bem. O que essa menina sabe de mim?

- Nada?

- Nada e mais alguma coisa ou outra que ela ouviu falar de sei lá quem que leu na minha rede social por causa de um compartilhamento x. Tá acompanhando?

- Acho que sim.

- Eu tava gastando energia demais com isso. Resolvi comer batata frita.

- E ela sumiu?

- Sei lá.

- Pera, meu celular tá apitando. Amiga, você não acredita. Sabe a Lurdinha?

- Ahm.

- Aquela ex-namorada do irmão da Luciana.

- Sei.

- Adivinha COM QUEM ela tá trocando mensagem. E SOBRE QUEM.

- Cara.

- Sério, você não acredita o que ela tá falando aqui.

- É sobre batata frita?

- Claro que não.

- Então foda-se.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Terapia

- Quanto tempo, Marília. A que devo a honra de sua visita?

- Visita. Visita. Não sei se gosto muito desse seu deboche, doutora. Talvez por isso tenha ficado tanto tempo longe.

- Pouco provável, se bem te conheço, deve ter algo que está atiçando sua ansiedade.

- Você realmente acha que me conhece muito, né?

- Bom, são anos sendo sua terapeuta. Seis anos, talvez?

- Quase sete.

- Perfeito. Quase sete. A que devo essa consulta? Qual é a emergência?

- O Du.

- O que tem ele?

- Ah, você sabe. Minhas amigas me mandaram mensagem pra comentar sobre a esposa dele, que eles estavam em Paris ou coisa parecida. Justo Paris.

- O que tem Paris?

- Nós sempre pensamos em viajar pra lá.

- Hum.

- O que?

- Muita gente pensa em viajar pra lá. Não é exatamente como se você tivesse exclusividade nisso. Paris.

- Você é meio insensível, né?

- Pode ser. Mas não nesse caso. Há quanto tempo vocês estão separados?

- 5 anos.

- Pois é. 5 anos.

- E?

- Quem foi que terminou?

- Eu.

- E por que?

- Porque eu tava cansada dele.

- Pois é. E?

- E o que?

- Continua, Marilia.

- O que?

- Continua, Marilia.

- Ok. Eu nunca gostei dele como ele gostava de mim.

- É isso?

- Eu nunca gostei dele. Eu fiquei com ele porque ele gostava de mim e eu nunca gostei da ideia de estar sozinha.

- Não é melhor você falar isso em voz alta?

- Não.

- Talvez por isso nós estejamos há quase 7 anos em uma conversa que mais parece aquele filme, o Dia da Marmota.

- Não sei se essa sua abordagem é muito ortodoxa.

- Interessante.

- O que?

- O quanto você odeia ser confrontada.

- Isso não é verdade.

- O que suas amigas pensam disso tudo?

- Que ele é um cretino.

- Por que?

- Por causa de tudo que ele fez comigo, é claro.

- E o que ele fez contigo?

- Isso não vem ao caso.

- É mesmo?

- Bom, elas acham que ele me abandonou quando soube que eu estava grávida.

- Um momento. Eu não lembro de ter anotado isso aqui. Grávida?

- Sim.

- Pulamos essa conversa?

- Não. Eu não estive grávida.

- E?

- Eu não queria que elas soubessem que eu tenho pavor da ideia de morrer sozinha que nem minha mãe e minha tia.

- Então é melhor mentir?

- Grande merda, elas não iam continuar falando com ele mesmo, que diferença faz?

- Meu Deus, Marilia...

- Eu acho que você está exagerando, sabe?

- Ok. E seus pais?

- O que é que tem?

- O que eles pensam disso tudo?

- Bom, meu pai acha que ele é um canalha por ter me largado, é claro.

- Por causa do bebê?

- Pirou? Você realmente acha que eu ia deixar meu pai pensar que eu tava grávida?

- Só falta você me dizer que ele ainda acha que você é virgem.

- ...

- Mesmo com vocês tendo morado juntos?

- ...

- Hum. Sua mãe?

- Eu nunca tive que dizer nada pra ela. Ele foi embora e ela entendeu que eu era a vítima. Como ela foi.

- Claro. Da última vez que você veio aqui havia um rapaz na sua vida.

- Sim, o Beto.

- E?

- Estamos namorando.

- E o que ele pensa sobre essa sua obsessão com seu ex?

- Que obsessão, doutora?

- O que ele pensa?

- Ele não sabe. Tudo que ele sabe é que minhas amigas gostam muito mais dele do que daquele canalha.

- Ok. Ainda não entendi exatamente o que te trouxe aqui, já que você insiste que não tem nenhum problema. Não pode ser só Paris.

- Não. Ele vai ser pai. Já é, na verdade. O filho dele nasceu essa semana. No dia em que eu te liguei.

- E como isso te fez sentir?

- Você sabe, nós sempre pensamos...

- Não, não é verdade. Você nunca quis ter filhos, sempre disse que não queria ser sua mãe. Chegou a pensar em soluções definitivas, eu sugeri que conversássemos mais um pouco antes de você tomar qualquer decisão tão drástica.

- Você realmente anota tudo nesse caderninho, né?

- Sabe, eu acho que você confunde um pouco terapia com uma igreja, ou algo parecido.

- Não entendi.

- Você acha que vai fazer o que te der na cabeça fora daqui, vai ignorar tudo que conversamos, vai chegar aqui e me contar tudo e eu simplesmente vou te receitar algumas coisas, umas aves marias ou coisa parecida e você vai sair daqui leve e absolvida. Não é assim que funciona. Eu acho que você conseguiu não mudar absolutamente nada a seu respeito desde que entrou aqui a primeira vez.

- Você tem certeza de que isso é apropriado para uma terapeuta?

- Talvez não seja, Marilia. Mas eu já estou me sentindo incapaz de fazer qualquer coisa por você. E eu preciso te dizer isso, não dá pra simplesmente continuar aceitando seu dinheiro sem que esse trabalho surta nenhum efeito. É pelos remédios?

- Claro que não!

- Você não pode continuar vivendo nessa fantasia. Esse mundo incrível em que você não comete erros e todo mundo que se relaciona com você é tão mal caráter, sabe? Você parece só manter por perto quem bate palma pra você dançar.

- Você acabou de me chamar de maluca?

- Claro que não, isso seria completamente inadequado.

- Ah tá! ISSO seria inadequado.

- Ok. Você acha que eu estou errada?

- Não sei.

- Você acha que eu estou errada?

- Não. Mas...

- Você tem medo de ficar sozinha.

- E se eu for honesta?

- Algumas pessoas talvez te deem as costas. Mas outras podem ficar. Você não prefere assim?

- Não sei.

- Não te cansa fingir ser outra pessoa? Pior. Não te cansa fingir ser tantas pessoas? Porque seus amigos veem uma versão de você que seus pais sequer conhecem, e nenhuma delas é real. A não ser que...

- Que o que?

- Que você também tenha uma personagem pra mim.

- Não.

- Não?

- Não, aqui eu sou eu mesma. Acho que você gritaria comigo se eu fingisse qualquer coisa.

- Que absurdo.

- O que você quer que eu faça?

- Que você fale a verdade.

- Sobre?

- Por que você está aqui?

- Porque ele não morreu.

- Oi?

- Quando eu terminei com ele. Ele disse que ia morrer sem mim. Mas ele não morreu. Ele encontrou outra. Ele se casou. Eles tiveram um filho. E eu nem posso saber se o menino é lindo ou se ele é vesgo, porque ele me bloqueou em todas as redes sociais, eu não tenho acesso a ele.

- E você o culpa?

- Não.

- Marilia, o que você tem a ver com a vida dele?

- Não deveria ter sido tão fácil ele viver sem mim.

- Você nunca gostou dele, essa moça, a esposa dele, deve gostar. Eles constituiram família. A vida deles é deles e não tem absolutamente nada a ver com você. Já se passaram 5 anos, Marilia. Desculpa eu te dizer isso, mas o mundo não gira em torno de você.

- Certeza mesmo de que esse seu método é aceitável?

- Nós tentamos abordagens mais suaves e olha no que deu.

- E o que eu faço?

- Você precisa desapegar dessas vidas paralelas, dessas suas fantasias e começar a lidar com a realidade. Mesmo que ela seja menos colorida do que esses mundos que você inventou pra viver. Precisa contar a verdade pra quem te cerca e arcar com as consequências.

- E se eu não quiser?

- Eu terei de recomendar que você procure outro terapeuta.

- Mas...

- Desculpa, eu não posso continuar. É frustrante pra mim também.

- E se eu não estiver pronta?

- Você pode ir um de cada vez. Seus amigos, seus pais, seu namorado. Mas você precisa começar. Você tem 35 anos, Marilia. E sua vida quase inteira foi perdida nessa brincadeira.

- ...

- Pode chorar.

- Você vai me abandonar.

- Não vire a mesa.

- Não estou...

- Está sim. Quase 7 anos. Fora os 56 que eu mesma já vivi.

- Ok. Você é uma cretina.

- Somos duas então.

- ...

- A diferença é que eu estou sendo uma cretina pro seu bem.

- Isso é...

- Olha! Acabou nosso tempo. Tenho outro paciente, ele já deve estar esperando. Me liga semana que vem pra marcar a próxima sessão.

- Eu odeio você.

- Considerando que todos esses anos você viveu se odiando, fico feliz com a novidade. Até a próxima sessão. Carlos! Vamos entrar? Tchau, Marilia.