segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Qual é a nota?

- Amor?

- Na cozinha.

- E as crianças?

- Com a minha mãe.

- Cara, você não acredita. Lançaram uma versão masculina daquele aplicativo que avalia os caras.

- É mesmo?

- Aham. É pra você saber se as suas amigas são piranhas na cama.

- Nossa, que produtivo. Você tá à caça?

- Claro que não, né Cecília? É pela brincadeira.

- Sei.

- Ah, poxa. Não pode mais brincar?

- Você achou que era brincadeira quando descobriu que tava com nota 6,5 no outro aplicativo?

- Isso não vem ao caso.

- Assim como não veio ao caso o fato de você namorar comigo desde o colégio e sua única outra namorada ter sido a Joana, naquele ano em que eu fiz intercâmbio e você achou melhor terminar pra não sofrer com a minha distância. Adiantou?

- Acho que estarmos tendo essa conversa agora diz que não, né?

- Pois é. Pensei que não.

- Você não entrou naquele aplicativo?

- Não, Paulo. Eu tenho 2 filhos. A Cláudia vem me ajudar só 3 dias por semana. A gente tem babá só nos dias em que a gente resolve transar fora de casa. Eu trabalho. E faço a comida praticamente todo dia. Eu tô pouco me fudendo pra esse aplicativo.

- Você me irrita, sabe? Com essa sua praticidade.

- Ok.

- É sério.

- Tá bom.

- O que você tá fazendo?

- O jantar.

- Sabe que tem uma avaliação sua no tal aplicativo?

- Mentira. Deixa eu adivinhar. Foi você quem fez?

- Foi. Hahaha...

- E você disse que eu sou uma piranha?

- Claro que não! Você é a mãe dos meus filhos! Coloquei que você transa de luz apagada e curte papai-e-mamãe. Nada de boquete.

- Que maravilha.

- Você tá sendo irônica?

- Na verdade eu tô imaginando como seus amigos estão pensando que é sua vida sexual agora. Tipo. Uma baita merda, né? Vai ser ótimo o clima na próxima reunião aqui em casa.

- Porra, nem tinha pensado nisso. Pera. "Vadia". "Cachorra". "Curte tapas". "Transa de 4". Pera... Tá. Agora sim.

- Ficou parecendo uma atriz pornô.

- Né?

- Vai ser ótimo na próxima reunião do colégio das crianças.

- Caralho, Cecília! Eu não dou uma dentro! O que você quer que eu faça?

- Que você pare de perder seu tempo com idiotice. Continuo pouco me fudendo. Vai lá e bota a mesa que o jantar tá quase pronto.

- Tá...

- Ah...

- Que?

- Hoje eu quero de quatro.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Inimigas

- E aí?

- E aí o que?

- Me conta!

- O que?

- Sobre aquela menina lá, que tava falando de você, das amigas e tal.

- Ah!

- Então?

- Sei lá.

- Parou?

- Não sei.

- Você foi lá tirar satisfação?

- Não, eu tinha um cupom pra batata frita extra naquela lanchonete perto do trabalho.

- E daí?

- Me pareceu mais importante aproveitar do que perder meu tempo com briga besta.

- Não entendi.

- Qual parte?

- Ah, até pouco tempo você tava me contando sobre o quanto ela te difamou, que você quase perdeu seu emprego por causa disso, o namorado, que sua vida tava indo pro brejo.

- Pois é.

- O que mudou?

- Eu entendi que eu não tava na quinta série.

- Oi?

- É. Não era ela que tava me causando problemas no trabalho. Ou no relacionamento. Ou na vida. Era o tempo que eu perdia com algo que deveria ser ignorado. Pensa bem. O que essa menina sabe de mim?

- Nada?

- Nada e mais alguma coisa ou outra que ela ouviu falar de sei lá quem que leu na minha rede social por causa de um compartilhamento x. Tá acompanhando?

- Acho que sim.

- Eu tava gastando energia demais com isso. Resolvi comer batata frita.

- E ela sumiu?

- Sei lá.

- Pera, meu celular tá apitando. Amiga, você não acredita. Sabe a Lurdinha?

- Ahm.

- Aquela ex-namorada do irmão da Luciana.

- Sei.

- Adivinha COM QUEM ela tá trocando mensagem. E SOBRE QUEM.

- Cara.

- Sério, você não acredita o que ela tá falando aqui.

- É sobre batata frita?

- Claro que não.

- Então foda-se.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Terapia

- Quanto tempo, Marília. A que devo a honra de sua visita?

- Visita. Visita. Não sei se gosto muito desse seu deboche, doutora. Talvez por isso tenha ficado tanto tempo longe.

- Pouco provável, se bem te conheço, deve ter algo que está atiçando sua ansiedade.

- Você realmente acha que me conhece muito, né?

- Bom, são anos sendo sua terapeuta. Seis anos, talvez?

- Quase sete.

- Perfeito. Quase sete. A que devo essa consulta? Qual é a emergência?

- O Du.

- O que tem ele?

- Ah, você sabe. Minhas amigas me mandaram mensagem pra comentar sobre a esposa dele, que eles estavam em Paris ou coisa parecida. Justo Paris.

- O que tem Paris?

- Nós sempre pensamos em viajar pra lá.

- Hum.

- O que?

- Muita gente pensa em viajar pra lá. Não é exatamente como se você tivesse exclusividade nisso. Paris.

- Você é meio insensível, né?

- Pode ser. Mas não nesse caso. Há quanto tempo vocês estão separados?

- 5 anos.

- Pois é. 5 anos.

- E?

- Quem foi que terminou?

- Eu.

- E por que?

- Porque eu tava cansada dele.

- Pois é. E?

- E o que?

- Continua, Marilia.

- O que?

- Continua, Marilia.

- Ok. Eu nunca gostei dele como ele gostava de mim.

- É isso?

- Eu nunca gostei dele. Eu fiquei com ele porque ele gostava de mim e eu nunca gostei da ideia de estar sozinha.

- Não é melhor você falar isso em voz alta?

- Não.

- Talvez por isso nós estejamos há quase 7 anos em uma conversa que mais parece aquele filme, o Dia da Marmota.

- Não sei se essa sua abordagem é muito ortodoxa.

- Interessante.

- O que?

- O quanto você odeia ser confrontada.

- Isso não é verdade.

- O que suas amigas pensam disso tudo?

- Que ele é um cretino.

- Por que?

- Por causa de tudo que ele fez comigo, é claro.

- E o que ele fez contigo?

- Isso não vem ao caso.

- É mesmo?

- Bom, elas acham que ele me abandonou quando soube que eu estava grávida.

- Um momento. Eu não lembro de ter anotado isso aqui. Grávida?

- Sim.

- Pulamos essa conversa?

- Não. Eu não estive grávida.

- E?

- Eu não queria que elas soubessem que eu tenho pavor da ideia de morrer sozinha que nem minha mãe e minha tia.

- Então é melhor mentir?

- Grande merda, elas não iam continuar falando com ele mesmo, que diferença faz?

- Meu Deus, Marilia...

- Eu acho que você está exagerando, sabe?

- Ok. E seus pais?

- O que é que tem?

- O que eles pensam disso tudo?

- Bom, meu pai acha que ele é um canalha por ter me largado, é claro.

- Por causa do bebê?

- Pirou? Você realmente acha que eu ia deixar meu pai pensar que eu tava grávida?

- Só falta você me dizer que ele ainda acha que você é virgem.

- ...

- Mesmo com vocês tendo morado juntos?

- ...

- Hum. Sua mãe?

- Eu nunca tive que dizer nada pra ela. Ele foi embora e ela entendeu que eu era a vítima. Como ela foi.

- Claro. Da última vez que você veio aqui havia um rapaz na sua vida.

- Sim, o Beto.

- E?

- Estamos namorando.

- E o que ele pensa sobre essa sua obsessão com seu ex?

- Que obsessão, doutora?

- O que ele pensa?

- Ele não sabe. Tudo que ele sabe é que minhas amigas gostam muito mais dele do que daquele canalha.

- Ok. Ainda não entendi exatamente o que te trouxe aqui, já que você insiste que não tem nenhum problema. Não pode ser só Paris.

- Não. Ele vai ser pai. Já é, na verdade. O filho dele nasceu essa semana. No dia em que eu te liguei.

- E como isso te fez sentir?

- Você sabe, nós sempre pensamos...

- Não, não é verdade. Você nunca quis ter filhos, sempre disse que não queria ser sua mãe. Chegou a pensar em soluções definitivas, eu sugeri que conversássemos mais um pouco antes de você tomar qualquer decisão tão drástica.

- Você realmente anota tudo nesse caderninho, né?

- Sabe, eu acho que você confunde um pouco terapia com uma igreja, ou algo parecido.

- Não entendi.

- Você acha que vai fazer o que te der na cabeça fora daqui, vai ignorar tudo que conversamos, vai chegar aqui e me contar tudo e eu simplesmente vou te receitar algumas coisas, umas aves marias ou coisa parecida e você vai sair daqui leve e absolvida. Não é assim que funciona. Eu acho que você conseguiu não mudar absolutamente nada a seu respeito desde que entrou aqui a primeira vez.

- Você tem certeza de que isso é apropriado para uma terapeuta?

- Talvez não seja, Marilia. Mas eu já estou me sentindo incapaz de fazer qualquer coisa por você. E eu preciso te dizer isso, não dá pra simplesmente continuar aceitando seu dinheiro sem que esse trabalho surta nenhum efeito. É pelos remédios?

- Claro que não!

- Você não pode continuar vivendo nessa fantasia. Esse mundo incrível em que você não comete erros e todo mundo que se relaciona com você é tão mal caráter, sabe? Você parece só manter por perto quem bate palma pra você dançar.

- Você acabou de me chamar de maluca?

- Claro que não, isso seria completamente inadequado.

- Ah tá! ISSO seria inadequado.

- Ok. Você acha que eu estou errada?

- Não sei.

- Você acha que eu estou errada?

- Não. Mas...

- Você tem medo de ficar sozinha.

- E se eu for honesta?

- Algumas pessoas talvez te deem as costas. Mas outras podem ficar. Você não prefere assim?

- Não sei.

- Não te cansa fingir ser outra pessoa? Pior. Não te cansa fingir ser tantas pessoas? Porque seus amigos veem uma versão de você que seus pais sequer conhecem, e nenhuma delas é real. A não ser que...

- Que o que?

- Que você também tenha uma personagem pra mim.

- Não.

- Não?

- Não, aqui eu sou eu mesma. Acho que você gritaria comigo se eu fingisse qualquer coisa.

- Que absurdo.

- O que você quer que eu faça?

- Que você fale a verdade.

- Sobre?

- Por que você está aqui?

- Porque ele não morreu.

- Oi?

- Quando eu terminei com ele. Ele disse que ia morrer sem mim. Mas ele não morreu. Ele encontrou outra. Ele se casou. Eles tiveram um filho. E eu nem posso saber se o menino é lindo ou se ele é vesgo, porque ele me bloqueou em todas as redes sociais, eu não tenho acesso a ele.

- E você o culpa?

- Não.

- Marilia, o que você tem a ver com a vida dele?

- Não deveria ter sido tão fácil ele viver sem mim.

- Você nunca gostou dele, essa moça, a esposa dele, deve gostar. Eles constituiram família. A vida deles é deles e não tem absolutamente nada a ver com você. Já se passaram 5 anos, Marilia. Desculpa eu te dizer isso, mas o mundo não gira em torno de você.

- Certeza mesmo de que esse seu método é aceitável?

- Nós tentamos abordagens mais suaves e olha no que deu.

- E o que eu faço?

- Você precisa desapegar dessas vidas paralelas, dessas suas fantasias e começar a lidar com a realidade. Mesmo que ela seja menos colorida do que esses mundos que você inventou pra viver. Precisa contar a verdade pra quem te cerca e arcar com as consequências.

- E se eu não quiser?

- Eu terei de recomendar que você procure outro terapeuta.

- Mas...

- Desculpa, eu não posso continuar. É frustrante pra mim também.

- E se eu não estiver pronta?

- Você pode ir um de cada vez. Seus amigos, seus pais, seu namorado. Mas você precisa começar. Você tem 35 anos, Marilia. E sua vida quase inteira foi perdida nessa brincadeira.

- ...

- Pode chorar.

- Você vai me abandonar.

- Não vire a mesa.

- Não estou...

- Está sim. Quase 7 anos. Fora os 56 que eu mesma já vivi.

- Ok. Você é uma cretina.

- Somos duas então.

- ...

- A diferença é que eu estou sendo uma cretina pro seu bem.

- Isso é...

- Olha! Acabou nosso tempo. Tenho outro paciente, ele já deve estar esperando. Me liga semana que vem pra marcar a próxima sessão.

- Eu odeio você.

- Considerando que todos esses anos você viveu se odiando, fico feliz com a novidade. Até a próxima sessão. Carlos! Vamos entrar? Tchau, Marilia.






sábado, 19 de outubro de 2013

O projeto

- Mari?

- Oi, amor.

- Eu fui tentar pegar uma roupa no armário agora e percebi que tem um bloqueio na frente das gavetas.

- Hum.

- Tem algum motivo pra isso?

- Aaaaah! Sim, sim, claro.

- Você pretende me contar?

- Pera um segundo, tenho que terminar de mexer essa mistura na panela.

- O que você tá fazendo?

- Brigadeiro.

- Hum.

- Pronto. Então, Zeca. Eu tô com um projeto.

- Lá vem.

- Fica quieto.

- Tá.

- Eu vou resolver os problemas de decoração da casa.

- Com rolos de papel higiênico e caixas de papel?

- Aham.

- Tem maconha nesse brigadeiro?

- HA HA HA.

- Acho uma pergunta válida.

- Não, José Carlos. Eu tô com tudo desenhado na minha cabeça e ainda por cima serei sustentável. Você deveria se orgulhar da minha iniciativa, em vez de ficar debochando de mim.

- Mari, isso é tipo aquela vez em que você resolveu que ia fazer tricô pra economizar nas roupas de frio?

- Pode falar, mas você adora aquele poncho que eu fiz pra você.

- É um cachecol.

- A receita do poncho era impossível e o cachecol ficou lindo.

- Cabe só no cachorro, mas é lindo mesmo.

- Ele arrasa quando passeia no inverno, eu vejo a inveja nos outros cachorrinhos.

- Claro. Teve também a vez em que você resolveu que ia fazer geléia em casa, porque as que tinham no mercado eram muito cheias de açúcar e sei lá mais o que.

- Você adorou as geléias que eu fiz!

- A geléia. A geléia. Você jogou mais fruta fora do que conseguiu botar nos potinhos.

- Tá bom, Zeca. Tá bom.

- Mas tava gostosa. Eu jamais teria pensado que geléia de fruta do conde ficaria boa.

- Eu sou criativa.

- Tipo quando você decidiu que todos os móveis da casa seriam de pallet e caixa de feira. Acho que eu guardei os desenhos pro sofá em algum lugar...

- Se a gente não tivesse achado aquela super liquidação de móveis naquela loja nossa sala seria motivo de conversa entre todos os amigos.

- Com certeza.

- O que você está insinuando,\José Carlos? Eu senti o deboche nessa sua entonação.

- Mari?

- Que?

- Por que você não admite que seus projetos são furados?

- Que absurdo!

- Sério, meu amor. Você é engenheira, qual o problema de admitir que você é melhor com números do que com origami?

- Dessa vez vai ser diferente.

- Por que?

- Porque eu achei um blog.

- Ai, cacete.

- É sério. Ele tem todos os passos explicadinhos do que fazer, com vídeos e fotos. É demais.

- Que porra de blog é esse?

- Esse aqui, ó.

- Aaaaaaaaaaaah!

- Que?

- Você não vai acreditar.

- O que?

- É uma coincidência engraçada.

- O que?

- Esse blog.

- Ahm.

- É da minha ex. A Carol.

- Carol Marques é a sua Carol Marques?

- Aham.

- Hum.

- Que?

- Que dia é hoje mesmo?

- Quarta.

- Gente, que coincidência.

- O que?

- É dia de passar o caminhão da coleta seletiva. Deixa eu aproveitar pra botar aquela papelada toda na lixeira antes que eles passem. Nossa! Já são 9h, deixa eu correr!

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Compras

- Alô?

- Oi, amor.

- Só pra avisar que eu vou passar no mercado antes de ir pra casa, vou comprar o jantar.

- Opa, qual será o cardápio?

- Não sei ainda, depende do que eu encontrar no mercado.

- Como assim?

- Te explico mais tarde, te amo.

- Também te amo, linda.

...

- Amor?

- Oi! Tá em casa?

- Não, tô no mercado ainda.

- Eu já tô chegando, me atrasei um pouco, mas tô chegando. Aconteceu alguma coisa? Tem duas horas que a gente se falou, achei que já estivesse atrasado pro jantar.

[lágrimas contidas] - Ai...

- O que aconteceu, Ju? Tá tudo bem?

- Você sabia que tem glicose na mostarda?

- Que?

- Tem glicose na mostarda. E açúcar. E aquele molho de tomate que eu sempre comprava porque dizia na embalagem que era mais saudável, com menos sei lá o que? Glutamato monossódico.

- Ju, onde você tá?

- No mercado.

- Chorando?

- Éééééééé... [lágrimas declaradas]

- Ju.

- Que?

- Vai pra casa?

- Beto, você sabe o mal que farinha de trigo faz?

- Cara, o que você tá falando?

- Eu li uma matéria.

- Puta que pariu.

- Que?

- Você e essas matérias.

- É sério. É uma pesquisa. Eles explicam que tomar suco de fruta todo dia aumenta o risco de diabetes.

- Ah, fudeu.

- Eu tô falando sério!

- Aham, agora não pode mais tomar suco de fruta.

- Claro que pode, mas não todo dia.

- Ju. Vai. Pra. Casa. Porra.

- Beto, eu não fiz as compras ainda.

- MAS VOCÊ TÁ HÁ DUAS HORAS NA PORRA DO MERCADO, TÁ FAZENDO O QUE ESSE TEMPO TODO, CARA?

- Tava lendo os rótulos. E VOCÊ PARA DE GRITAR COMIGO!

- Ok. Eu paro. Mas você vai largar esses rótulos e vai pra casa agora. Eu tô com fome.

- Eu não consegui comprar o jantar, vou cozinhar o que?

- Não tô mandando você ir pra casa pra cozinhar, só quero que você venha pra gente decidir junto o que vai comer.

- Ah, que merda.

- Que?

- Estraguei tudo, era pra ser uma surpresa, ia fazer costelinha no barbecue pra você, mas eu vi tudo que tinha no molho e decidi fazer eu mesma. Não deve ser difícil, né?

- E é?

- Não, mas tenta achar uma mostarda sem açúcar e sem glicose. E um molho sem glutamato. E cara, você já viu o tanto de sódio que tem nas coisas?

- Que coisas?

- TUDO!

- Juliana?

- Roberto?

- Chega.

- Mas amor...

- Chega.

- Tá.

- Vem pra casa?

- Eu vou. Mas posso te pedir uma coisa?

- Claro.

- Pede uma pizza?

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A caneca

Vinicius entrou em casa pra encontrar Mariana sentada num canto do sofá, aos prantos.

- Amor? Ce tá bem?

- Eu - soluço - nãããããããããão!!!! - agudo.

- Calma, Mari! O que aconteceu?

- Eu - mais soluços - iiiiiiiiiiiiiiiiih - ruído incompreensível.

- Respira. Calma. Respira.

Mariana respirou. Tomou fôlego. Quinze minutos depois, já aconchegada no peito de Vinicius, declarou:

- Eu quebrei sua caneca.

- Minha...

- Ai, amor, eu tava lavando a louça e fui mexer na pilha que você deixou no canto da pia e eu já liguei pra minha mãe e...

- Pera. A caneca que meu pai me deu?

- É, deixa eu terminar de arrumar a mala.

- Mari, senta. Pra que você vai arrumar mala?

- Eu vou ficar na mamãe, eu quebrei sua caneca.

Vinicius riu.

- Cara, você acha o que? Que a gente vai brigar? Que eu vou, sei lá, TERMINAR com você?

- Você amava a caneca.

- Mas eu amo você bem mais.

- Awn. Você não tá bravo?

- Não. Eu tô PUTO. Tô puto pra caralho. Mas, cara. Era uma caneca, sabe?

- Ai, amor, desculpa. Te amo, eu tava tentando fazer uma coisa bonita, legal, só fiz merda.

- Tranquilo. Mas por que você tava lavando louça?

- A Lurdes não veio. Disse que o neto tava com dor de dente.

- Entendi. Bom. Talvez seja interessante comprar uma máquina de lavar, hein?

- Ai, jura? Eu até vi umas tão legais na internet...

- Depois manda o link. Vamos ver o preço.

- Tá!

Vinicius se dirigiu à cozinha, pra avaliar o estrago, se despedir da caneca, essas coisas.

- Amor?

- Oi!

- Você me trouxe flores.

- Trouxe.

- Por que?

- Como assim por que?

- Não é data especial, não é meu aniversário, nem aniversário de namoro, nem nada demais.

- Ahm.

- O que você fez?

- Como?

- O que você fez?

- Mariana, você realmente tem a cara de pau de sugerir que eu teria te trazido flores pra encobrir alguma coisa errada? Qual o seu problema?

- Você nunca me dá flores, Vinicius. Coisa boa não deve ser.

- Quer saber, Mariana? Eu vou dar uma volta.

- Mas você acabou de chegar.

- Pra você ver. Tchau.

- Amor?

- Que? - Perguntou já com a porta aberta, um pé fora de casa e o outro prestes a seguir.

- Eu tô sem calcinha.

- Tem um vinho na geladeira, pera. Vou abrir.

Vinicius fechou a porta e foi lamentar a caneca quebrada.

Ou quase isso.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Aniversário

- Um ano já.

Ela comentou como se fosse nada.

- Um ano? - Ele beijou-lhe o pescoço. - Verdade. Um ano...

- Passou rápido, né?

- Passou. Quem diria...

- Bom, eu diria. Eu soube desde o primeiro dia.

- Soube?

- Sim, desde aquele café. Na hora em que você cheirou meu cabelo eu soube que ia me apaixonar por você. E que você era o cara.

- Eu não cheirei seu cabelo.

- Tá.

- Sério.

- Tá.

- Tá, eu cheirei seu cabelo. - Disse afundando o rosto em seu pescoço pra repetir o momento. - Você tava tão cheirosa aquele dia. Que nem agora.

- Eu sou cheirosa.

- Eu sei.

- Mas como eu dizia, eu sempre soube.

- Eu tive minhas dúvidas.

- Hein?

- Eu jurei que a gente fosse dar errado.

- Jurou que a gente fosse dar errado? Como assim? Quando?

- Ah, lá no comecinho. A gente era muito diferente. É muito diferente.

- Diferente em que?

- Em muita coisa. Em tudo. Sei lá. Eu achei que fosse dar errado.

- Me dá um exemplo.

- Para, cara. Não vem ao caso.

- Como assim não vem ao caso? Você achou que a gente fosse dar errado!

- Mas isso foi lá no começo. Bem no começo. Tem um ano já, cara. Deixa isso pra lá.

- Claro, deixa pra lá. Eu aqui contando uma história desse relacionamento e você me diz que não é nada disso.

- Hein?

- Ah, eu sempre achei que tivesse sido amor à primeira vista, arrebatador, blablabla. Você sabe a história. Eu conto o tempo todo.

- Mas foi assim. Eu me apaixonei por você desde o café. Desde o dia em que eu não cheirei seu cabelo.

- Aham.

- Foi sim. Eu só achei que ia dar merda.

- Porra.

- Que?

- Primeiro era dar errado. Agora é dar merda.

- Qual a diferença?

- Deixa pra lá.

- Lá vem.

Silêncio.

- Psiu.

- Oi.

- Que foi?

- Nada.

- Nada é o cacete. Você tá puta.

- Tô não.

- Tá sim, te conheço. Tá quieta, tá puta.

- Nem. Tô tranquila. Só aproveitando o momento.

- Que momento?

- Tô aqui registrando mentalmente a primeira vez em que eu estive certa nesse relacionamento. E você errado. Erradíssimo, na verdade. Absolutamente errado.

- Oi?

- É. Só você mesmo pra achar que a gente não ia dar certo.

- Hahahahahaha...

- Óbvio que a gente ia dar certo.

- Você é um gênio, amor.

- Um ano.

- Verdade...

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Classificação

Ouviu a porta abrir.

- Amor?

- Oi, amor.

- Quarta-feira. Não marca nada. Vou fazer um cachorro-quente aqui em casa, uns amigos vêm pra cá.

- Boa noite, amor. Como foi o seu dia? Tudo bem no trabalho? Também senti sua falta. Pera. Quarta? Mas quarta tem jogo! Copa do Brasil! Vale classificação, cara.

- Eu sei. Vai passar na TV. Aliás, assinei o PFC pra você.

- Oi?

- Assinei o PFC. Eu sei que você fica puto quando não acha onde ver, especialmente quando nenhum dos seus amigos topa ir naquele bar.

- Ah...

- Aliás, eles já confirmaram quarta-feira.

- Meus amigos?

- Isso. O Paulo, o Beto, o Igor.

- O Igor?

- Aham. E vai trazer a Natália.

- Natália?

- Namorada nova. Uma graça de menina.

- Eu já fiz uma lista de cervejas pra comprar. Tá tudo certo.

- Entendi.

- Tô terminando o jantar aqui. Se quiser tomar um banho antes de comer, tudo bem.

- Tá. É. Boa ideia. Vou tomar um banho.

- Ah. Amor?

- Oi?

- Eu tô grávida.

-...

- Tem sua cerveja favorita na geladeira.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Engano

- Cristina?

Parou. O coração engasgou, deu um soluço. Ninguém a chamava de Cristina, exceto se fosse pra brigar com ela.

Coisa de criança.

- Cristina!

Ergueu os olhos por um segundo que mais pareceu uma eternidade e reconheceu o rosto do homem de quem tentou fugir por anos.

O relacionamento passou diante de seus olhos como um filme lento e embaraçoso.

Engoliu em seco a vergonha de ter permitido que ele abusasse tanto dela por desculpas tão porcas, por flores e chocolates de que ela nem gostava.

- Não, senhor. O senhor deve ter me confundido com alguém.

Não era mentira.

A mulher que ele procurava não estava mais ali.

Ele a tinha matado tempos atrás.


sábado, 10 de agosto de 2013

Café

Juntou os grãos na palma da mão e pôs no moedor. Era a quantidade certa pra fazer café só pra ela.

Moeu fino e acomodou cuidadosamente no filtro. 

Derramou a água sem pressa enquanto lembrava do dia em que aprendeu a passar café, do jeito mais tradicional. 

Ou quase, já que seu porta-filtro era, como diziam as amigas, coisa fresca. 

Porcelana. 

Aprendeu a fazer café assim por causa delas. Se dependesse dela, fazia de qualquer jeito, menos esse. Mas elas sentiam falta de casa. E lá se fazia assim. 

Aprendeu porque sentia falta de casa também e sentar com as duas pra conversar entre um pão de queijo e outro até sair o café era o mais próximo de reunião de família que ela tinha nessa nova rotina. 

Saiu de casa por conta de trabalho e sentia pouco a falta da vida antiga. Mas quando batia saudade, maldita, ela vinha com força. 

Conheceram-se no trabalho, as três. Cada uma de um departamento da empresa, não tinham nem porque se conhecerem naquele mundo de gente e andares, naquele arranha-céu de impessoalidade. As pessoas mal se davam bom dia, mas as três se encontraram. 

Uma baiana, uma carioca e uma mineira perdidas em São Paulo. Um equívoco, foi tudo que precisaram.

Era uma tarde despretensiosa de uma quarta-feira esquisita. Daqueles dias meio feios, meio cinzas. A mãe da mineira havia mandado entregar no trabalho da filha uma peça bonita de queijo. Afinal, não era possível que aquela cidade tivesse queijo bom e ninguém merece passar tanto queijo comendo sabe-se lá o que eles entendem por queijo. 

Ninguém merece. 

O bilhete, na embalagem bem feita, dizia: "Carol, um beijo da mamãe."

Carol. 

Vocês sabem quantas Caróis existem num prédio desses? 

Pois é. 

Pelo menos três. 

Uma de cada canto do país. Nenhuma de lá. Não nesse caso. 

A mineira chamava Caroline. A carioca, Carolina. A baiana, não me perguntem como assim porque eu não sei a história, chamava Carol mesmo. Coisa de hippie, talvez. Ou não. 

O tal queijo passou por muitas mesas até achar Carol. Que achou Carolina. Que achou Caroline. Que ficou feliz. E convidou as duas pra comer queijo. 

Sentaram e conversaram e comeram queijo e tomaram café e falaram da vida e de família e de amigos e de saudade. 

O queijo virou hábito. 

A conversa virou hábito. 

O café virou hábito. 

Deixou de ser só de Carolina pra ser das três Caróis. 

Passado no filtro, do jeito que faziam em casa. Ou quase. Porque em casa não tinha aquela coisa fresca de porcelana. 

Mas era gostoso o tal café. Era delas. 

Um dia Carol conheceu Juan e foi morar em Buenos Aires. Caroline aprendeu a falar mandarim e foi arriscar a vida na China, o mercado lá tinha futuro, diziam. Carolina voltou pro Rio e foi trabalhar numa ONG. Ela sempre quis trabalhar com crianças e recebeu a proposta da vida pra desenvolver um projeto novo numa comunidade perto de onde tinha crescido. 

Era arriscado, mas ela já tinha cansado de São Paulo. 

Foram as palavras de Caroline antes de ir pra China que a empurraram. "Essa cidade está fazendo de mim alguém que eu não quero ser." 

Uma foi pro outro lado do mundo. A outra voltou pra casa. 

Ou quase. Porque a sua casa nunca tinha sido arriscada. 

As coisas mudam, né? 

Mas tem coisa que fica. 

Tipo a saudade. 

E aquela saudade tinha cheiro e vontade de café. 

Moeu os grãos, botou no filtro, acrescentou a água quente devagar. 

Os pingos tinham barulho das conversas e risadas de cada uma e todas elas naquela cozinha. 

Falavam-se cada vez menos desde que foram cada uma prum canto, mas Carolina sentia falta delas. Tinha coisa que só dava pra contar pra elas, que só tinha graça com elas. 

Estava feliz no Rio. O projeto dava certo. As pessoas eram boas e ela achava, pela primeira vez, que talvez fosse mesmo possível mudar o mundo. 

Mas só depois do café. 

terça-feira, 23 de julho de 2013

Então...

- Você tá proibido de morrer, tá? - Ela disse como se fosse a coisa mais natural do mundo, ou como se a conversa tivesse caminhado para tal desfecho. Na verdade estavam quietos há algum tempo na cama.

Ele já tinha quase dormido.

- Que, Aline? De onde você tirou isso?

- Lugar nenhum. Só não morre.

Um dos melhores amigos de colégio de seu irmão tinha morrido há pouco tempo e desde então ela vinha pensando nisso. Na morte. E nas pessoas que ela amava morrendo.

- Não é que eu não fosse saber viver sem você, sabe, Rafa. É só que eu não quero. Tipo. Eu amo nossa vida. Eu amo você. E eu não tô pronta pra não ter isso aqui. Não agora. Tem tanta coisa pra gente fazer.

- Tipo o que?

- Viajar pra fora do país. Adotar um cachorro. Ter um apartamento maior. Um fogão industrial pra eu fazer comida de verdade. Filhos.

- Aline, você tá tentando me dizer alguma coisa?

- Sim, que você tá proibido de morrer.

- Só isso? Sua menstruação tá em dia, né?

Silêncio.

- ALINE?

- Babaca.

- Cara, me responde.

- Eu aqui pensando na minha vida sem você e você aí tenso porque acha que eu tô dando volta pra te contar alguma coisa?

- Não seria a primeira vez.

- Não tô grávida.

- Ok.

- Mas não morre. Tá?

- Eu não posso te prometer uma coisa dessa. Ninguém sabe o dia de amanhã. Mas se eu morrer, você sabe que eu sou doador de órgãos, né? E eu quero ser cremado.

- Affe, por que você tá falando isso?

- Porra, foi você que começou!

- Mas eu não queria entrar na burocracia da sua morte. Só tava decretando que você tava proibido de morrer. Tava não. Tá.

- Ok, czarina. Estou proibido de morrer. Entendi. Mas se eu morrer, já sabe. E joga minhas cinzas no Maracanã.

- Bem seu tipinho mesmo. Fazer exatamente o contrário do que eu tô te pedindo. Beleza, vou espalhar você todo pela torcida do Fluminense.

- Justo do Fluminense, Aline? Puta que pariu!

- Sim. Se você pode morrer pra me contrariar, eu posso te condenar a passar o resto da sua vida na torcida do Fluminense.

- Ok, eu vou atormentar a torcida do teu time pra toda a eternidade. Nenhuma vassoura, nenhum aspirador de pó, merda nenhuma vai tirar a minha zica daquela torcida e a culpa vai ser sua. Tá pronta pra ser responsável pela maldição das Laranjeiras? Tá?

- Cala a boca, Rafael. Eu não quero mais falar sobre isso.

- Ótimo. Boa noite.

Silêncio.

- Amor?

- Hum?

- Tá dormindo?

- Tô.

- Tá nada, tá falando comigo.

- Fala, Aline.

- Você vai casar de novo se eu morrer?

- Nem vem que eu não vou cair nessa, não vou responder essa merda nem fudendo.

- Affe. Tá. Mas você tá proibido de morrer.

domingo, 30 de junho de 2013

Roda de samba

Estava inquieto. O bar muito cheio e até em sua mesa um tanto de gente desconhecida querendo atenção.

Ele, é claro, preferia estar em outro lugar.

Fazendo qualquer outra coisa.

Até que ela chegou e se juntou às outras que afinavam seus instrumentos e testavam microfones.

Linda, cabelos longos e soltos. Sorriso leve e contagiante.

Prendeu sua atenção de cara.

Achou lugar de frente pra ela e ajeitou-se na cadeira. Uma boa postura sempre causa boa impressão.

Que voz ela tinha. Que voz.

E ele, encantado, parou até de se inquietar. Seguiu sem dar atenção à mesa ou a qualquer outro que não fosse ela.

Pausa na roda de samba.

Ele aproveitou pra ir ao banheiro. Mas não sem avisá-la que voltaria logo, que não deixasse ninguém sentar em seu lugar.

Ela sorriu.

O intervalo foi rápido, mas não tão rápido quanto ele que, hipnotizado, seguiu cantando junto, batendo palmas e acompanhando cada batida sem piscar.

Ela era linda.

E que voz. Que voz.

O pessoal da mesa teve de ir embora e eles seriam sua carona.

Precisava aproveitar aquele momento pra se despedir dela apropriadamente, se fazer notar. Era sua chance, ou procuraria aquela mulher em todas as outras dali pra frente.

Talvez procurasse de qualquer forma.

Respirou fundo.

Aproximou-se de seu rosto e cochichou algo em seu ouvido, com a mão delicadamente apoiada em seu ombro.

Ela sorriu novamente e retribuiu com um delicado beijo na bochecha e um afago em seu cabelo.

Do alto de seus 5 anos, ele se sentiu vitorioso.

Sim, ele provavelmente procuraria aquele sorriso em todas as mulheres dali pra frente.

Mas, naquele momento, ele apenas queria comemorar sua primeira conquista.

Uma mulher mais velha.

Ele correu em direção à família, extasiado.

- Mãe! Mãe! Ela me beijou!


terça-feira, 4 de junho de 2013

Amuleto

Era sábado de jogo, mas também era sábado de feijoada.

A fome era muita, o tempo apertado e a cerveja, ainda mais naquele calor, estupidamente gelada.

Quem resiste a uma comida bem temperada e uma cerveja gelada?

A companhia, nem precisava dizer, era a melhor do mundo. Mas nem as gargalhadas os faziam tirar os olhos do relógio.

16h apitaria o juiz para o começo da partida.

Perderiam os primeiros minutos. tudo bem. Não é como se o time estivesse fazendo valer tanta a pena.

Mas paixão é aquela coisa, a gente ignora as evidências e os resultados.

Começo lento e cadenciado, os jogadores correndo em campo como carneirinhos a serem contados, tudo pra embalar seu sono que, obviamente, a venceu.

Ela dormiu o primeiro tempo inteiro, deixando pra ele a árdua tarefa de torcer pelos dois.

Foi acordada no susto por um grito de gol.

Anulado, mas suficiente pra que desistisse de dormir.

Ele inclinou-se sobre ela no sofá e começou a beijá-la.

GOOOOOOOOOOOOOOOOL!

Dessa vez válido.

- Você vai ter que me beijar de novo, foi o que deu sorte.

Não por isso, pôs-se a beijá-la novamente.

GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOL!

36 minutos. Ainda daria tempo de virar.

Estabeleceu acampamento ali em seu pescoço e boca. Melhor não arriscar.

Falta.

O melhor cobrador a postos. Beijos. Beijos. Beijos.

Trave.

Quase virou.

Quase.

Apitou o final de jogo. Juiz ladrão.

Tudo bem, ao menos não perderam.

- Sabe, amor, acho que teremos de ver todos os jogos do campeonato juntos. E toda vez que o time estiver no ataque você deveria me beijar. - Ela sugeriu em um argumento malandramente vazio.

- Nossa. Mas vai ser horrível ter que fazer esse sacrifício todo, te beijar a cada ataque. - Ele quis ser engraçado.

- Eu sei. - Ela se fez de sonsa antes do golpe final. - Mas faz pelo Flamengo.

Esse tinha tudo pra ser o melhor campeonato.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Ele

Chegou em casa especialmente irritada. Seu trabalho era estressante, mas aquele dia havia coroado uma semana complicada.

- Amor?

Pensou em reclamar com ele, mas não foi rápida o suficiente no gatilho.

- Beijo?

Ganhou um singelo selinho de oi, saudade de você típico de fim de dia.

- Você não sabe o que aconteceu no trabalho hoje.

Ele agora tinha turmas novas, depois de tanto tempo ensinando adultos a aperfeiçoar a pronúncia, ele passaria a pegar turmas de crianças bem pequenas. Um projeto novo do curso que ele foi escolhido pra liderar.

Além de ser um dos melhores professores da rede, adorava crianças.

A história era bonitinha, daquelas sobre alguma coisa que só pessoas bem inocentes conseguem protagonizar. Mas o mais bonito era ver seu olho brilhando ao compartilhar o acontecido.

- Já comeu?

Não. Tinha esquecido de comer. Merda. Quem esquece de comer, sabe? Coisa de gente doida. Gente que trabalha demais.

- Fiz seu favorito. Tinha tempo que não cozinhava isso pra você.

Além de tudo ele cozinhava. E sabia seu prato favorito. Foi uma das primeiras coisas que aprendeu. O que gostava de comer, sua cor preferida, as músicas, os livros, que preferia sapato baixo a botar salto e que trocaria qualquer balada pra sentar num bar e ver um jogo tomando uma cerveja bem gelada.

- Bota a mesa? Já tô terminando aqui.

Lavou as mãos e botou a mesa. Tinha tempo que não fazia isso. Desde sempre chegava em casa tão tarde que mal tinha tempo de sentar à mesa pra jantar. Comia qualquer coisa requentada no microondas sentada no sofá, de frente pra TV. Quando comia. Era normal simplesmente apagar no sofá com a TV ligada e o prato cheio apoiado na barriga.

Ela gostava de ouvi-lo falar. Contar suas histórias, seus dias. Seu mundo era tão diferente, tão mais leve.

Ao fim do jantar, quase tinha esquecido do dia horrível, da semana estressante, dos seus problemas.

- Deixa que eu lavo a louça, você já cozinhou.

- Certeza? Você tá cansada.

- Não, vai lá. Vai começar aquele documentário do George Harrison na TV. Já sento contigo, também queria assistir.

Tocou seu rosto com carinho. Ganhou um beijo na palma da mão em retorno.

- Te amo.

Ela sabia.

Sem nem saber, ele havia trazido pra vida dela toda uma rotina que a salvava de sua própria rotina.

Havia escolhido uma carreira tão naturalmente caótica que sua vida fora do horário comercial não poderia seguir o mesmo ritmo.

Mas só ao conhecê-lo finalmente entendeu.

Amor é calma.

Assistiram ao documentário.

Pela primeira vez em muito tempo iam deitar ao mesmo tempo.

- Amor, apaga a luz?

É. Não importavam as dificuldades.

Encostou a cabeça em seu ombro.

Finalmente.

Calma.

terça-feira, 28 de maio de 2013

O beijo

Lá estavam sentados naquela mesa de bar, um de frente pro outro.

Ele deixou que ela escolhesse o prato, ainda não tinham intimidade suficiente pra que soubesse suas preferências. Pediram dois chopps. Sem colarinho, por favor.

A conversa, como de costume, fluia incrivelmente. Ele a fazia rir como ninguém.

Os dois se olhavam como se não houvesse mais ninguém no mundo. Talvez houvesse, mas quem se importava?

Tudo que conseguia pensar era no tal beijo.

O primeiro beijo.

Coisa ridícula, como se nunca tivesse passado por aquilo antes.

Pois era como se nunca tivesse passado por aquilo antes.

Primeiro beijo é coisa complicada, tem toda uma engenharia.

A pressão dos lábios ao se tocarem, o quanto de língua, de saliva, de dente, o básico, os detalhes que fazem aquele beijo ser seu, pessoal e intransferível.

Os corpos, as mãos, toques e respiração.

O primeiro beijo cura uma ansiedade e abre as portas pra outra maior.

Mas uma coisa de cada vez.

Ele falava e ela ouvia pedaços.

Pensava em como a mesa estava no meio do caminho, que ele poderia ter se sentado do seu lado.

Primeiro beijo tem dessas coisas de timing. Que nem acontece naqueles filmes do mocinho arrumar uma desculpa pra passar o braço por trás da mocinha, sabe aquela espreguiçada? Assim.

Precisa ter daquelas manobras, um bom plano ou coisa que o valha.

Ele não parecia ter um plano.

Ou talvez nem estivesse preocupado com isso.

Talvez não quisesse beijá-la.

Mas que droga.

- Vem cá.

Inclinou-se sobre a mesa como quem fosse limpar aquele tiquinho de comida no canto da sua boca.

Era só o que faltava, ter comida espalhada na cara, veja lá se isso era momento pra ter...

E lá estava.

A engenharia perfeita.

O toque, o gosto, as mãos, as bocas, as línguas, os dentes.

O coração disparado.

Afastaram-se um segundo, apenas o espaço de um suspiro.

Abriu ligeiramente os olhos pra ver que ele mantinha os seus fechados enquanto uma das mãos tocava seu rosto e a outra passeava por seu cabelo.

Não havia mais ninguém ali.

Fechou os olhos novamente e, no breve instante em que suas bocas se reaproximaram, ela teve certeza e pensou consigo mesma.

- É. Fudeu.

terça-feira, 21 de maio de 2013

A lista

Gabi tinha uma lista.

O cara dos seus sonhos precisava cumprir determinados pré-requisitos pra que as coisas seguissem adiante.

Não que ela não ficasse com caras fora do padrão, mas eles quase nunca deixavam de ser algo pontual. Ou ocasional.

Ela tinha toda uma coisa com morenos altos, bonitos e sensuais. Não esperava que fossem a solução de seus problemas, mas era imprescindível que torcessem pro time certo.

Prioridades.

De todas as coisas que podia relevar, o time não era uma delas.

A lista era extensa. Alguns diziam que era impossível.

Talvez.

Mas não é como se a sugestão de sua falecida avó de que aceitasse qualquer coisa que lhe demonstrasse o mínimo de carinho tivesse funcionado tão bem. Pelo contrário, tinha lhe causado apenas problemas.

Ok. Algumas características mais do que provavelmente jamais se combinariam em um mesmo homem. Gabi sabia disso, mas também não estava disposta a desistir.

Alguns achavam que era por saber da improbabilidade que ela insistia na lista.

Assim teria uma desculpa pra ficar sozinha.

O cara ideal nunca apareceu.

Ele não existia.

Por isso seu espanto durante aquele almoço.

Foram duas horas sem querer mexer no celular. A conversa era tão boa que ela sequer fez questão de dar check in. Dane-se que os outros não soubessem onde ela estava.

Ele a fazia rir como há muito não fazia. A ponto de fingir que era charme a mãozinha na frente do rosto pra evitar que a gargalhada exibisse o alface decorando o dente.

Boa ideia pedir salada. Ótima, inclusive.

Pois ele passava em todos os quesitos da categoria triagem de sua lista.

Todas aquelas que não envolviam contato físico além de um abraço ou dois beijinhos educados de oi e tchau.

Gabi se pegou pensando no rapaz e no almoço e na lista a tarde inteira.

Uma tarde que virou uma vida enquanto ele não respondia quando podiam marcar de novo e ela rabiscava qualquer coisa sem sentido em seu caderno de anotações.

- Jantar amanhã? - dizia a mensagem.

Ela engoliu em seco. Sentiu um coração dar um salto mortal dentro do peito e um rebuliço enlouquecido na população de borboletas que tinha até esquecido que habitavam seu estômago.

Jantar. Agora poderiam beber. E dariam o primeiro beijo.

Há quanto tempo ela não pensava nisso. O beijo. Não qualquer beijo. O primeiro. O beijo determinante. Aquele que todos os outros beijos deveriam seguir. O que ela lembraria pela música, pelos cheiros, pelas cores, pelas línguas e bocas e respirações.

Dali saberia se tinham química ou se seriam apenas absurdamente compatíveis intelectualmente. Era bom conversar com ele. Ele a fazia rir, afinal.

Gabi suspirou alto e se pegou escolhendo a roupa que usaria antes mesmo de responder a mensagem.

Estava ansiosa.

Hã muito tempo não ficava assim por um cara sem tê-lo beijado.

Ok, sem ter feito bem mais que um beijo.

Estava nervosa.

Respirou fundo. Primeiro, precisava responder a mensagem.

- Claro! Japonês? - Digitou.

Olhou pra tela do celular congelada.

Não sabia como pontuar. Uma carinha piscando? Uma carinha feliz? Um emoticon especial? Tinha que ser a resposta certa. A carinha perfeita.

Percebeu-se ridícula.

Há quanto tempo não tinha essas dúvidas?

Quando foi a última vez que ficou sem saber o que fazer?

Em que a antecipação de um beijo sequestrou seu foco e concentração?

Sentiu-se uma adolescente.

Boba.

Quase patética.

Lembrou da lista.

Precisava riscar aquele beijo da lista.


domingo, 12 de maio de 2013

Trânsito

Lúcia acreditava em horóscopo.

Todo primeiro dia do mês ela corria pra acessar as previsões de Susan Miller, seguia três astrólogos no Twitter e tinha seu e-mail cadastrado no Personare pra saber quando estava passando por um novo trânsito astrológico.

A verdade é que Lúcia era ansiosa. E essa foi sua forma de antecipar todas as coisas e se programar pro que viesse de bom e de ruim a cada mês, semana, dia, hora, minuto, segundo.

Tinha uma agenda em seu telefone toda organizada, com alertas específicos pra que pudesse se preparar psicologicamente para tudo.

Sabia quando era dia de chegar mais cedo no trabalho porque o elevador poderia quebrar, quando cortar o cabelo pra crescer mais rápido e saudável, quando não discutir com os colegas de trabalho porque qualquer bobeira poderia tomar proporções épicas.

Aquele mês tinha tudo pra ser incrível. Susan havia previsto que Lúcia encontraria o amor de sua vida. Seria entre os dias 12 e 13, com o dia 15 especialmente incrível para o romance.

Ela mal podia esperar. Desde o término de seu último relacionamento (os astros indicavam que nada ia bem ali), Lúcia não havia se envolvido com ninguém de verdade. Mas agora ela sabia que tudo apontava para algo bom.

"Você finalmente conhecerá sua alma gêmea,\taurina! E a química entre vocês será algo que você nunca experimentou. Prepare-se pra ser surpreendida!"

Não que ela gostasse de surpresas, mas podia abrir uma exceção pra sua alma gêmea.

Claro que não seria um período perfeito. Nunca é. Naquele mesmo mês Lúcia teria um problema com encanamento. Um vazamento ou inundação. Algo tenso.

Dane-se. Ela ia conhecer o amor da sua vida!

Tratou de montar uma lista com encanadores de confiança, inclusive alguns que atendiam final de semana e emergência, caso um cano estourasse de madrugada. Vai que, né?

Dia 12. Lúcia acordou mais cedo. Lavou o cabelo e fez uma escova bonita. Escolheu seu vestido favorito e o perfume especial. Tinha marcado depilação antes de ir pro trabalho e manicure na hora do almoço. A previsão não especificava a que horas o rapaz apareceria, mas quem conhece o príncipe encantado em plena luz do dia?

Tudo pronto, lá foi ela comer alguma coisinha depois do salão, talvez tomar um capuccino. Ela adorava capuccinos.

Enquanto esperava no sinal pra atravessar a rua, um hidrante explodiu em cima dela. Foi instantâneo. Não se sabe se foi a tampa que atingiu sua cabeça ou a própria pressão da água que a arrastou alguns metros.

Ironicamente, naquele exato momento, Diego começava seu primeiro dia no café que Lúcia frequentava com frequência por ser tão próximo do escritório.

Eles tinham muito em comum e não seria difícil reparar isso. Em dois dias ele perderia o medo e ofereceria um café de cortesia. Não, um capuccino. E a convidaria pra jantar.

Mas quem conhece o amor da vida em plena luz do dia?

Pensando bem... Quem morre atingida por um hidrante?

quinta-feira, 9 de maio de 2013

7 minutos

Ele saiu acelerado do carro do metrô e diminuiu o passo assim que passou pela multidão da plataforma.

Olhava pros lados como se procurasse algo ou alguém.

Subiu as escadas rolantes com a calma de quem não tinha qualquer compromisso no mundo, mas não conseguia disfarçar sua ansiedade.

Ela caminhava logo atrás, quase 15 passos contados de distância. Parou ao lado dele por 1 minuto quase cronometrado e ganhou a frente.

Quase coreografado.

Ele seguia olhando pros lados. Agora como se quisesse se certificar de que ninguém o seguia.

Havia encontrado o que procurava.

Mantinham a distância pela rua. Na esquina, enquanto aguardavam o sinal abrir.

Ele parou na farmácia pra comprar o mesmo chiclete de sempre.

Ela seguiu para o apartamento onde se encontravam há 3 anos pra esperá-lo mais 7 minutos.

Uma breve eternidade roubada a cada semana, o momento em que ela fingia não ter se casado com o homem errado.

O tempo era certo pra que ela se despisse e o esperasse nua na cama, luzes apagadas.

Em 3 anos ele só vira seus hematomas 1 vez e a expressão em seus olhos foi suficiente pra que se impusesse a regra.

Só no escuro.

Durante todo aquele tempo ele passava do chiclete à fechadura pensando em como tirá-la de casa. Em ter a seu lado mais que terças-feiras contrabandeadas e viagens em carros separados de metrô.

Sempre que encaixava a chave na porta ele pensava na primeira e única vez em que viu aqueles hematomas.

A expressão no rosto dela era de vergonha.

Como se aquilo a tornasse menos linda, gostosa ou atraente pra ele. Pequenas manchas.

Sentiu raiva. Dele. Do cara que a tinha em casa todo dia.

Pensava apenas em como tirá-la dele.

Desde aquele dia, tudo com que sonhava antes de abrir a porta era com um pouco de luz.

- Posso entrar?

terça-feira, 7 de maio de 2013

Ela

Aquele talvez fosse um dos encontros mais improváveis. Os dois, justo aqueles dois, sentados em uma mesma mesa de bar.

Começaram a falar antes mesmo de pedir qualquer coisa.

- Posso começar?

- Foi você quem sugeriu que nos encontrássemos. Acho que faz sentido.

- Justo.

- Cara, eu te odeio.

- Que bom. É recíproco. Pelo menos em parte. Porque eu te acho um grande profissional e gostaria que um dia fôssemos amigos. Ou trabalhássemos juntos. Mas não posso dizer que gosto de você.

- Faz tempo que eu sonho em meter a mão na sua cara.

- Já tive essa vontade também. Especialmente naquela festa. Você não tirava os olhos dela.

- Eu sabia que você existia. Ela falava de você o tempo inteiro. O cara por quem ela não podia mais me ver. O cara com quem ela achava que poderia dar certo. Porque você não tinha medo de expressar seus sentimentos.

- Ela nunca falou de você. Depois daquela festa, eu suspeitei que houvesse algo. Mas ela não quis confirmar.

- Não é do feitio dela.

- Não. Quando ela esteva comigo, foi minha. Toda minha. Mesmo que eu não soubesse ser dela, ela sempre soube ser minha. Muito tempo depois ela me contou de vocês.

- Vocês se falam agora?

- Foi difícil. Eu tive trabalho pra convencê-la a falar comigo de novo. Eu fiz merda, eu sei. Fiz mal a ela. Não foi intencional. Tirá-la da minha vida foi uma das escolhas mais difíceis. É incrível a falta que alguém tão pequeno pode fazer.

- Você ainda não explicou o motivo dessa conversa.

- A falta que ela faz.

- Cara, você não vai casar?

- Sim. E não me entenda mal. Eu amo minha mulher. Amo mais que tudo. Mas antes de conhecê-la, antes de amá-la, antes de tudo isso, eu tive de esquecer aquela pequena. Eu tive que parar de sentir a falta dela. E, cara, ela faz falta.

- Por que você tá me falando isso?

- Porque você tá prestes a cometer meu erro.

- Teu erro?

- Quase. Eu abri mão dela. Você tá deixando ela desistir de você.

- Não tô te entendendo.

- Eu sei que eu tô me metendo onde não fui chamado. Mas ela fala de você. Ela te ama. Te ama de verdade. Eu achei que ela me amasse. Mas ela tava comigo pra te esquecer. É foda dizer isso, mas é isso. Ela te ama. E ela tá esperando você amá-la de volta. E ela tá sacando que não vai rolar. Mas eu sei que você não é tão indiferente a ela assim. Um cara indiferente não fica do jeito que você ficou ao ver a mulher com outro numa festa.

- Cara...

- Eu sei. Não é da minha conta. Mas sei lá. Ela é incrível, sabe? E eu queria muito vê-la feliz. Talvez eu não me perdoe pelo que eu fiz. Talvez eu só ache que você é o cara que vai fazer direito o que eu não soube fazer. E eu te odeio por isso. Por ter essa chance.

- Sério. Podemos pedir uma cerveja?

- Claro.

O garçom trouxe uma Serramalte gelada.

- Um brinde?

- Você me trouxe aqui.

- A ela. Não. Melhor. Que você nunca entenda a falta que ela faz.

Desencanto

Antonia decidiu ir pro curso só pra ver se aquilo tiraria seu pensamento de Fred.

Obviamente, não deu certo. Aquele lugar, aquelas pessoas a faziam sentir-se estúpida. Assim como ele.

Ela não tinha as referências certas, não conhecia nenhum daqueles artistas, obras, intervenções, instalações ou qualquer que fosse o nome certo daquilo. Ela não entendia todas as conexões que seus colegas faziam quando viam uma porcaria de um risco na parede.

Talvez tivesse sido péssima ideia ir a aula em vez de simplesmente sentar num bar, encher a cara e flertar com qualquer um. Ela só precisava parar de pensar nele.

Tentou focar em algo que fizesse parte de seu mundo não artístico. Ponto de vista. Olhar pra alguma coisa ou alguém de outro jeito.

Como ele. Ela precisava parar de inventar pra si mesma que Fred era seu grande amor, que um dia ele perceberia isso, que ele só precisava de um pouco de tanto faz o que.

Lá estavam eles de novo falando de performances, de uma moça que havia convocado pessoas aleatórias a se desfazerem de objetos que lembrassem ex-amores e jogar tudo em uma caçamba de lixo. Riram do que foi levado. Um disco do Raça Negra. Quem dava disco do Raça Negra pra uma namorada?

Antonia gostava de Raça Negra. Suas músicas sempre fizeram sentido pra ela naqueles momentos em que precisou de consolo.

Mas ela não entendia de arte, talvez não entendesse de música também.

Quarenta minutos de cara de paisagem até a hora de ir embora. Foram todos juntos a caminho do ponto e ela ficou feliz por ser a única a ir pro lado oposto. A caminhada até o metrô seria suficiente pra reorganizar a cabeça.

Outro ponto de vista.

Qualquer coisa que a fizesse aceitar, de uma vez por todas, o quanto Fred a estava usando. Falava de amor pra continuar tendo sexo vez ou outra. Ela não era especial, apenas mais disponível que as outras.

De longe percebeu um homem se aproximando. Carregava uma sacola nas costas, provavelmente cheia de latinhas, que fazia muito barulho. Começou a reparar o ritmo do metal batendo, de como tudo harmonizava com seus passos. Só quando ele chegou bem perto entendeu que era um morador de rua já de certa idade. Ele cantava.

"Você jogou fora.."

Antonia sempre gostou de Raça Negra. E de como suas músicas sempre fizeram sentido.

Ela sorriu um meio sorriso desolado.

Era tarde demais.

Que pena.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

A última dose

Há um ano ele ia ao mesmo bar e sentava na mesma mesa, sempre de frente para as prateleiras de cachaças. Um ano exatamente, nem um dia a mais ou a menos.

Toda vez ele pedia a porção de pastéis, só carne, nada de queijo ou camarão. E uma dose de cachaça.

Ele já tinha experimentado todas as marcas dispostas nas prateleiras, menos uma.

Aquela não.

O garçom achava esquisito como ele sempre pedia a mesa pra dois, mas nunca chegava ninguém pra lhe fazer companhia.

Desde aquele dia, um ano atrás, Guto havia transformado sua ida ao bar em um ritual. Era por Carol que ele bebia. Sua dose de cachaça era metade reverência e metade culpa.

As duas desciam rasgando.

Era seu aniversário de namoro, o dia em que ele finalmente pediria Carol em casamento. Depois de 4 anos de namoro, ele estava pronto.

O anel era lindo, nada convencional. Como ela. Carol era tudo menos comum.

Por isso ele escolheu o bar em que brigaram pela primeira vez pra fazer o pedido. Foi depois daquela briga que ele entendeu que até discutir com ela era mais gostoso do que qualquer coisa com outra mulher.

Estava tudo combinado pras 21h. Ela saíria da galeria, do lado de casa, pra encontrá-lo lá.

Guto havia deixado uma garrafa de cachaça reservada com o dono, daquelas especiais, cheias de frescura e envelhecimentos e outras coisas complicadas que nunca fizeram sentido pra ele, mas que faziam Carol sorrir sempre que ela provava uma pinga nova.

Uma paixão herdada de seu avô, o grande amor de sua vida, um mineiro simpático que Guto nunca teve certeza se ia com a sua cara ou não.

Enfim.

Tudo estava pronto, mas Guto teve uma reunião de emergência no escritório que o atrasou 40 minutos. Ele ligou pra Carol pra avisar que demoraria um pouco, mas que ela poderia esperá-lo direto na mesa já reservada.

"Sem problemas, amor. Eu esqueci um negócio em casa, vou aproveitar que é pertinho e passo lá pra pegar. Vou pro bar em seguida. Te amo."

Foi coisa rápida, questão de segundos. Quem viu acontecer mal conseguiu explicar. Um farol alto, um barulho de pneus cantando por conta de uma manobra errada. A ambulância chegou rápido, mas não puderam fazer nada.

Guto mal conseguiu chegar ao bar, seu telefone tocou no meio do caminho.

Ela tinha ido buscar seu presente de aniversário de namoro, duas doses de cachaça personalizadas. Em uma se lia "meu", na outra se lia "teu". No bilhete, apenas uma linha. "Por todas as coisas que você aprendeu por mim. Por todas as coisas que eu entendi por você."

Dessa vez ele faria diferente.

"Amigão, quero aquela garrafa ali." Disse, apontando a única garrafa fechada, lacrada e separada de todas.

"Aquela tá reservada, senhor."

"Eu sei. É pra mim."

Guto botou os copinhos na mesa. O garçom trouxe a cachaça e ele serviu duas doses.

"Sabe, eu nunca mais me atrasei."

Ele brindou e bebeu a sua parte.

A saudade desceu queimando.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Nada

Mariana dormia de boca aberta. Era a coisa favorita de Caio a seu respeito. Ele aprendeu isso depois de muitas noites acordado, só olhando enquanto ela dormia.

Podia-se dizer que era uma insônia seletiva adquirida, já que Mariana odiava manifestações de carinho e esse era o único momento em que ele podia violar essa regra, que era muito mais do que clara entre eles.

Na verdade, não é que ela odiasse. Ela apenas não as considerava apropriadas para o tipo de relacionamento que tinham.

Nenhum.

Caio surgiu em sua vida logo após o fim de um namoro longo e complicado. Tanto o relacionamento quanto seu término.

Ele era famoso por ser um cara mulherengo e isso logo a atraiu. O que ela menos precisava então era drama. Tinha que ser fácil, tinha que ser leve, tinha que ser só sexo.

E foi.

E foi bom.

E foi o melhor.

E continuou sendo. Durante um ano, mais ou menos, Caio e Mariana se viram sempre que quiseram. E eles queriam muito.

Viraram melhores amigos. Ela contava pra ele sobre tudo, sem perceber toda a intimidade que já tinham. Ele chorava com ela como se fosse aquele único amigo com quem está tudo bem ser fraco.

Mariana e Caio eram muito parecidos. Riam muito sempre que estavam juntos, tinham mil piadas internas e todas as referências pra terem conversas chatas que só faziam sentido entre eles.

E o sexo.

O melhor sexo.

Mas não era apropriado em um não relacionamento que se demonstrasse carinho. Então Caio aprendeu a ficar acordado sempre depois de transarem. Mariana era do tipo que dormia em seguida. Dava as costas e apagava mesmo. E depois virava de lado. Era quando ele a observava.

Ela dormia de boca aberta.

E tinha uma mecha de cabelo que insistia em cair dentro de sua boca quando ela respirava forte. Ele gostava de tirar aquela mecha e acomodá-la bem atrás de sua orelha, só pra passar a mão delicadamente em seu rosto. De leve, bem de leve, para não acordá-la.

Até porque seu sono era leve. Especialmente esse. Ela dormia rápido, mas acordava do mesmo jeito. Essa coisa de querer se arrumar pra ir embora. Ou pra que ele fosse embora. Não era deles essa coisa de passar a noite juntos.

Caio sabia que não era nada pra Mariana. Mas já fazia tempo que a recíproca não era verdadeira.

Nunca disse nada por causa do acordo tacitamente estabelecido. Eles não eram nada. Não deviam ser nada. Ela não precisava disso.

E isso não saia de sua cabeça. Enquanto a observava dormir, tentava criar coragem pra dizer que não queria mais daquele jeito. Então Mariana fechou a boca. Era o primeiro sinal de que acordaria em seguida.

Ele fechou os olhos. Fingiu dormir.

Ela abriu os olhos. Tinha tempo que Mariana fingia dormir pra não ter que conversar com Caio depois do sexo. Ela não queria ter que contar pra ele que daquele jeito não dava mais. Que o via diferente. Queria diferente. Ela estava cansada de ser só uma grande foda?

Mariana queria ter coragem.

Pra quebrar suas próprias regras.

Ela não aguentava mais fingir.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Bens

Sempre que um relacionamento chega ao fim parece que se abrem alguns universos paralelos. Três, ao menos, com certeza. O primeiro se baseia em um. O segundo se baseia no outro. O terceiro, na falta de nome melhor, poderia ser a verdade.

Quando Lígia e Raul se divorciaram, parecia impossível imaginar um mundo em que os dois fossem o casal perfeito.

O processo demorou um tempo, mas pra quem tava de fora, foi do nada. Da noite pro dia, eles deixaram de ser melhores amigos que conversavam sobre tudo pra ser aqueles loucos que brigavam pela poltrona do escritório.

A maldita poltrona do escritório.

E nem era uma poltrona bonita. Falando muito honestamente, aquela talvez fosse a poltrona mais feia da história da decoração moderna.

Sequer era confortável.

Servia mais de cabideiro, estante e suas variantes do que como poltrona propriamente dita.

Mas lá estavam os dois brigando por ela.

Lígia e Raul se conheceram na faculdade logo se tornaram aquele casal insuportável, que parecia existir como se soubesse de algo que o resto do mundo não sabia.

Coisa de música, superaram toda barra mais pesada que tiveram.

Ou quase.

Ninguém viu acontecer. Talvez nem eles tenham visto.

Acordaram um dia brigando pela poltrona. A poltrona que ELE escolheu, aquela vadia. A poltrona que ELA comprou, aquele egoísta.

A poltrona onde ele percebeu que a amava o suficiente pra pedi-la em casamento. A poltrona em que ela disse sim. A poltrona onde ele planejou a família que teriam juntos. A poltrona em que ela contou pra ele que não podia ter filhos.

Dividiram os livros.

Dividiram os discos.

Dividiram até os amigos.

O problema era a poltrona.

Justo aquela poltrona maldita que nem combinava com nada.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Diagnóstico

Anna acordou enjoada. Na verdade, estava enjoada fazia um tempinho, mas na última semana tinha piorado bastante e naquele dia ficado insuportável.

Justo ela, que tinha fobia de hospitais, admitiu que não daria mais pra enrolar.

Precisava de ajuda profissional.

Chegou no balcão, entregou a carteirinha do plano, a identidade e explicou à enfermeira o que estava sentindo. Estava morrendo, era claro.

Talvez estivesse ali só para que o médico lhe dissesse quando, assim poderia arrumar as coisas e deixar tudo pronto.

Odiava dar trabalho.

- Anna? Anna?

- Eu! Aqui!

Não demorou muito que chamassem seu nome.

- Anna, o dr. Raul irá atendê-la. Por favor, vá com ele.

Dr. Raul. Anna não sabia se queria ser tocada por um Raul. Enfim. Ela também não queria morrer e talvez fosse o caso.

- Anna. Diga, Anna. O que você está sentindo?

- O que eu NÃO estou sentindo, né? Talvez fosse mais fácil começar por aí.

- Como preferir.

- Estou com taquicardia. E um enjoo que não passa. E volta e meia me dá uns calores, não sei de onde vem, ou pra onde vão, porque somem com a mesma facilidade com que vieram.

- E isso começou há muito tempo?

- Uns meses.

- Meses???

- Sim.

- Mas você procurou um médico só hoje?

- Não gosto de hospitais.

- Claro, faz muito sentido.

- Acho que o senhor está sendo irônico.

Mal se conheciam e ele estava sendo irônico. Homens.

- Preciso que você faça alguns exames.

- Por isso odeio hospitais.

- Bom, preciso descartar qualquer doença séria e os sintomas que você descreveu são meio genéricos.

Anna foi levada pela enfermeira para uma bateria de exames. Testaram seu coração, seu cérebro, hemograma completo, urina e até fezes.

- Anna? O dr. está com os resultados dos seus exames, pode entrar.

Como ela odiava os segundos que precediam a entrega dos exames. Especialmente considerando que eles a tinham testado até o DNA.

- Quanto tempo tenho?

- Você não tem nada, absolutamente nada.

- Como assim NADA? Mas e os enjoos, a dor de cabeça, as tonturas, as pernas bambas, o coração batendo...

Anna foi interrompida por seu celular, tocando escandalosamente um alerta de mensagem.

- Desculpe.

Enquanto botava o maldito no mudo, o médico pôde observar seu rosto corar. Aproveitou e levou o estetoscópio até seu peito e observou seu coração, disparado, pular uma batida. Ou duas.

- Namorado?

- OI? CLARO QUE NÃO!

Três. Talvez quatro.

- Hum. Definitivamente. O que você tem é só amor. Ou paixão?

- Hein? Tem certeza, dr.? Certeza que não é uma virose?

Sim. Uma virose seria bem mais fácil de tratar.

E de explicar.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Ex

Piscou a janelinha do mensageiro e Marina viu o nome de Carlos conversando com ela. Era a primeira vez em quase 7 meses desde que se separaram.

- Saudade de você descalça pela nossa casa.

- Você odiava meus pés.

- Eu odeio pés.

- E a casa era minha.

- Eu passava mais tempo nela do que na minha, já via como minha casa.

- Eu passo mais tempo na agência do que em casa e nem por isso considero minha.

- Meu Deus, tinha esquecido como você é exagerada, Marina.

- O que você quer, Carlos? Eu esqueci de te devolver a camisa do Boca?

- Você tava com a camisa do Boca?

- Não.

- Marina?

- Sim, mas não pretendo devolver.

- Saudade de você com a minha camisa do Boca.

- Não vou te devolver.

- Quero te convidar pro lançamento do meu livro.

- Você escreveu um livro?

- Sim.

- Sobre?

- Em grande parte, sobre você.

- Que?

- Você foi um capítulo importante da minha vida. Tomei liberdade poética pra te transformar num livro todo.

- Puta que pariu.

- Que?

- Sou uma bruxa? Um alienígena devorador de almas? Algo tipo o predador? O que você fez, Carlos?

- Tinha esquecido como você era dramática.

- Carlos?

- Você é a heroína, Marina. É uma história de amor. Eu acho.

- Que?

- Eu te amo, Marina. Sempre te amei. Não te amo do mesmo jeito. Mas sempre vou te amar.

- Quando é o lançamento?

- Sábado.

- Ok.

- Mandei o convite pro seu escritório.

- Ok.

- Ok?

- Ok, ué. Até eu ter lido o livro, é ok. Estarei lá.

- Ok. Saudade de você andando descalça pela nossa casa.

- Eu não vou devolver a camisa. Bjs

- Ok. <3

domingo, 17 de março de 2013

Escolhas

João começou a namorar Ana quando ainda estavam no colégio.

Foi com ela sua primeira bebedeira. Consequentemente, sua primeira ressaca.

Com ela, planejou largar o colégio, desistir da faculdade e se juntar ao circo. Viver em uma comunidade hippie, plantar as próprias comidas e ter 3 filhos.

Ana sempre apoiou suas ideias doidas. Mais que isso, sempre foi doida com ele.

Saltaram de paraquedas, de bungee jump, de asa delta. Fizeram malabarismo no sinal pra fechar a conta daquela viagem de 3 meses pra acampar na Chapada.

Ana correu atrás de editora pra publicar seus poemas quando João decidiu que queria ser escritor. Achou quem filmasse seus roteiros quando seu sonho virou o cinema.

Daí o tempo passou, o vestibular chegou e seu pai deixou claro que essa vida sem rumo não era uma opção. Ou ele escolhia um caminho ou deixava de contar com o dinheiro da família.

João escolheu a engenharia.

E deixou Ana de lado.

Ela ganhou uma bolsa pra estudar artes em Barcelona. Mais tarde, parece, passou um tempo no circo, antes de se firmar como uma grande artista plástica em algum lugar da Europa.

João virou engenheiro. Formou-se com a melhor nota da classe, para orgulho de seu pai.

Logo conheceu Mariana, advogada mais jovem a se tornar sócia da firma em que trabalhava. Moça brilhante.

Com Mariana, João juntou dinheiro para comprar um apartamento. Três quartos, pensando na família que queria formar e no escritório que precisavam ter.

Nunca mais jogou malabares.

Ou saltou de paraquedas.

Bungee Jump.

Ou asa delta.

Nunca mais foi ao circo.

Ou pensou em juntar-se a ele.

Nunca mais escreveu poemas.

Ou roteiros para filmes.

Nunca mais acampou.

Ou foi espontâneo.

João agora planejava tudo nos detalhes.

Era um profissional reconhecidíssimo no seu ramo.

Um verdadeiro adulto.

Mas que saudade João tinha de Ana.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Hora extra

Carolina olhou o relógio do celular por hábito. Eram 5 da tarde, mas ela sabia que ainda teria de ficar até tarde no escritório.

Estava no emprego novo há quase 3 meses e, pela primeira vez, era responsável por cuidar do relatório final  do departamento. Muita responsabilidade, mas ela tinha esperado por isso ansiosamente. Sinal de que sua chefe finalmente confiava nela o suficiente. 

Parou pra pegar um copo d'água e uma xícara do café horroroso da máquina, a única bebida que podia consumir de graça, e voltou pra mesa. Olhou novamente o relógio. Maldito hábito. 

Dessa vez tinha mensagem na tela. 

Era Bruno, pra avisar que teria que furar com ela. De novo. Precisava terminar alguns trabalhos na agência. 

Sair com publicitários era como sair com médicos, diziam. Não que ela já tivesse saído com médicos. Ou com publicitários. 

Merda, ela tinha esquecido que tinha marcado com ele. Estava tão focada no tal relatório que ficou feliz até quando recebeu a mensagem da irmã avisando que não passaria em sua casa com filmes e pizza. Não que ela se lembrasse de ter combinado alguma coisa com ela também. 

Carolina tinha passado por muitos empregos detestáveis antes de conseguir a entrevista que a levou ao atual. As amigas a julgavam por isso, mas ela sentia como se estivesse vivendo um sonho e pouca coisa a fascinava tanto quanto o trabalho no momento. 

Era difícil convencê-la a fazer qualquer coisa naqueles últimos meses, dava pra contar nos dedos os convites que aceitou pra beber ou jantar ou ver um filme que fosse. E poucas eram as pessoas que ela queria ver. 

Bruno apareceu sem querer, uma amiga os apresentou. Eram feitos um pro outro, ela disse. Gostavam das mesmas coisas, aparentemente. As conversas realmente eram legais. Basicamente online, já que ambos tinham pouquíssimo tempo pra marcar de se encontrarem no mundo real. Mas eram boas conversas mesmo. 

Ele era engraçado. E parecia bonito pelas fotos. Corpo legal. Não que ela ligasse pra essas coisas. 

Quando saíram a primeira vez, tentaram achar um meio do caminho entre os trabalhos de ambos. Assim ficaria fácil pra todo mundo. Ou menos complicado. Nada chique ou romântico em comer petiscos e tomar cervejas de garrafa, mas quem tinha tempo pra romance?

Não transaram. Deixaram essa parte pra um segundo encontro. Ou terceiro. A verdade é que ela tinha uma reunião no dia seguinte cedo e ele tinha uma apresentação que ainda não tinha terminado de montar. Ia virar a noite fazendo isso. 

Marcaram o segundo encontro. Ela desmarcou. Marcaram de novo. Ele desmarcou. Marcaram de novo. Choveu. Marcaram de novo. E de novo. E de novo. 

Daí o relatório. E ela esqueceu de desmarcar. Tudo bem. Ele estava desmarcando. 

Ela olhou pra tela do celular mais uma vez. Estava feliz com a mensagem. 

Não que não estivesse interessada nele, mas um relacionamento definitivamente não era seu foco no momento. 

Rascunhou a resposta infinitas vezes na cabeça, digitou e deletou algumas outras tantas, até a tela piscar de novo.

- Não fica chateada?

Deu um gole no café horrível - e agora frio - e, finalmente, escreveu. 

- Claro que não. Eu entendo. 

Pontuou com uma carinha feliz e,antes de voltar pro seu relatório, completou. 

- Remarcamos?

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Debora olhou pra todos os lados, pra confirmar se estava sozinha. Já era tarde, nenhum conhecido por perto. Sentou-se na mureta da igreja na esquina da rua onde trabalhava. Abaixou a cabeça, apoiou-a sobre as mãos e começou a chorar tudo o que estava preso no último mês.

A verdade é que não aguentava mais sorrir e posar de forte quando se sentia tão sozinha e desamparada. Queria conversar com alguém, mas todos os seus amigos estavam distantes. Não só fisicamente, mas de sua realidade. Seria como tentar entender um episódio daquele seriado que você ficou tanto tempo sem assistir.

Começou a perceber o cheiro das velas derretidas. Estava sentada bem do lado do lugar onde as pessoas vão acender velas. Aquele cheiro de cera, do pavio queimado, de esperança, desespero, fé, promessas, tudo misturado.

Queria acreditar em Deus, ou em alguma coisa. Talvez fosse mais fácil, teria pra quem contar suas coisas. Ou pedir. Mas pedir o que, se nem ela sabia qual era o problema?

- Você está bem, minha filha?

Debora tinha procurado rostos conhecidos, mas tinha esquecido da senhorinha que ficava na igreja vendendo as velas na entrada.

- Estou sim. - Disse, enxugando as lágrimas.

- Aqui não é um lugar muito bom pra se estar sozinha a essa hora.

- Eu sei, eu só precisava parar um pouco.Já estou saindo.

- Calma, fica sentada mais um pouco. Também não é boa ideia sair por aí chorando desse jeito.

- Não é nada. Eu tava só precisando botar pra fora um pouco. Às vezes faz bem, né? Dizem.

- Faz. Faz mesmo.

- Sabe, eu acho curioso quem vem aqui, pega essas velas e acende, faz uma prece, uma promessa, sei lá o que se faz, na verdade, e sai daqui esperando ser atendido. Funciona? Nunca vi funcionar. Mas as pessoas saem daqui com uma tranquilidade, como se tivessem passado o problema pra frente, pra mão de outro.

- Não sei se vejo assim, mas acho que você não acredita em Deus, não é?

- Não muito, desculpe. Tenho 27 anos de motivos pra não acreditar.

- Eu entendo. Respeito, até. Tenho 56, trabalho voluntariamente nessa igreja faz 20, desde que casei. Meu marido morreu tem 5 anos e me deixou uma pensão gorda, não preciso me preocupar com trabalho, então posso me dedicar ainda mais a isso. Gosto, sabe? De entregar as velas nas mãos das pessoas como se estivesse passando um pouco de esperança. Elas fazem isso por fé, minha filha. Como você chama?

- Debora.

- Acho que tem um pouco de desespero, sim. Às vezes. Mas não vejo como passar o problema pra frente, vejo mais como aceitar que tem coisas que não dependem só de você e que talvez você não precise carregar toda a responsabilidade do mundo sozinha sobre seus ombros.

- Eu queria acreditar nisso.

- Você é bem nova pra ser tão descrente.

- Será?

- Quer acender uma vela?

- Mas já disse que não acredito em Deus. Não sei nem como rezar, ou sei lá o que se faz.

- Não precisa acreditar em Deus pra isso. Ou rezar. Faz assim. Acende a vela e pensa no que está te atormentando. Olha bem pra chama da vela enquanto isso. Não será um pedido, uma promessa, uma prece. Será um guia pra te iluminar o caminho, pra te ajudar a encontrar isso que você tanto procura.

- Eu quero paz.

- Todos queremos, filha. - Disse a mulher passando a mão sobre os cabelos de Debora como um carinho.

Ela se levantou, ajeitou o vestido e pegou a bolsinha de moedas, em busca de trocados.

- Quanto é a vela?

- Não precisa se preocupar com isso. Essa é por minha conta.

Debora acendeu a vela e deixou pingar aquela primeira gotinha de cera pra fincar sua base ali naquele pedestal. Nunca tinha feito aquilo antes, mas já tinha visto sua avó e sua mãe fazerem. Fechou os olhos um pouco antes de olhar fixamente pra chama e pensar em tudo que a havia levado às lágrimas, àquela mureta.

Não sabia explicar porque estava tão perdida, nem sabia se aquilo tudo faria alguma diferença. Conversar com aquela senhora a tinha deixado mais calma, pelo menos naquele breve momento.

Talvez ela precisasse de perspectiva. Talvez tudo aquilo fosse mesmo passar. Talvez a vela iluminasse seu caminho e tudo fizesse sentido amanhã, ou o tempo que precisasse pra que aquilo tudo fizesse efeito, ela não sabia ao certo.

Ou talvez sua confusão se derretesse com a cera e se misturasse com o pavio queimado, a esperança, o desespero e a fé de tantos outros.

Por enquanto, ela estava mais calma.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Outra

Vadia.

Queria te encontrar pela frente e que você cruzasse o meu caminho só pra eu poder te dizer isso na cara. Que eu te odeio.

Te odeio por estar tão feliz nas fotos com ele. E por ele parecer tão feliz do teu lado.

Porque tenho certeza de que você não é tão burra quanto eu gostaria que fosse e porque você é mais linda do que deveria ser. As pessoas deveriam ser proibidas de serem assim tão magras, altas e loiras.

Te odeio por saber andar de bicicleta e poder fazer com ele todos os passeios que eu nunca fiz por não ter aprendido a pedalar sem rodinhas.

Porque o cheiro do whisky dele não te dá náusea, já que você bebe a mesma marca. E por gostar de carnaval. Eu sempre fugi dos blocos que ele insistia em frequentar e, confesso, muitas vezes fiz ele abrir mão de alguns pra ficar comigo em casa.

Eu podia sentir a frustração nos olhos dele.

Te odeio por ouvir dos amigos em comum que ele nunca esteve tão feliz. E por eu achar que realmente seja verdade.

Porque você talvez seja a esposa do meu marido e a mãe dos meus filhos e a dona da minha casa.

E eu te culpo por isso.

Porque eu já cansei de me culpar.

Vadia.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Redenção

Há mais de cinco anos não pisava naquela rodoviária. Completariam seis anos naquela sexta-feira, pra ser mais exata.

E, se dependesse dela, não teria pisado ali nunca mais.

Desceu do ônibus carregando uma pequena mochila, não pretendia que sua viagem se estendesse além do necessário.

Reconheceu alguns rostos assim que botou os pés na plataforma, podia sentir os olhares curiosos em cima dela. Sabia que sua partida era, mais que um mistério, a fofoca favorita da cidade.

Foi coisa de relacionamento que deu errado, era o que todos diziam. Estavam certos. Só não sabiam o quão errado.

Passou pela banca de jornal onde comprava a mesma revista todo dia 13 de cada mês. Queria aprender como apimentar o relacionamento e fazer com que o marido a visse como uma mulher desejável.

A padaria onde sempre comprava o pão fresco pro café da manhã e a cerveja gelada no fim do dia. Seu marido odiava pão velho e a cerveja no fim do dia era sagrada. Bem gelada.

A pequena clínica do bairro, onde o médico a recebia de quando em quando pra olhar hematomas e eventuais cortes. A enfermeira já tinha virado quase uma amiga, não fosse seu olhar de julgamento toda vez que entrava pela porta de cabeça baixa contando sobre o último acidente na cozinha.

Eles provavelmente nunca acreditaram em suas histórias.

Era estranho passar por cada canto da cidade de onde fugiu e lembrar-se com tantos detalhes da vida de que tentou se desvencilhar, da pessoa que ela queria tanto deixar de ser.

Finalmente, a porta azul da casa amarela. A última casa da rua Carlos, o número 12 descascado do mesmo jeito que estava quando ela bateu a porta atrás de si quase seis anos atrás.

Foi por aquela porta que ele a carregou no colo e disse que naquela casa seriam felizes. E foi na frente daquela casa em que ele a espancou, na frente de todos os vizinhos, que apenas olharam enquanto ele gritava que não admitiria sua traição.

Naquele dia ela perdeu o filho que esperava.

Ela nunca o traiu.

A vizinha da casa ao lado estava trancando a porta quando ela chegou.

- Márcia, quanto tempo.

- Seis anos. Quase.

- Acredito que tenha vindo para resolver a burocracia da casa, ela agora é sua, certo?

- Sim. Creio que sim. Você tem compradores?

- Tem um casal interessado, mas eles fizeram uma oferta abaixo do mercado.

- Venda.

- Você não quer olhar suas opções?

- Não, eu só quero me livrar dessa casa.

- Tudo bem, eu tenho os papéis pra você assinar, se puder vir comigo.

- Ele morreu, né?

- Sim, morreu de cirrose faz uma semana.

- Eu só precisava ter certeza. Os papéis. Vamos?

Agora sim. Ela estava livre.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Adeus

Luisa queria que fosse um sonho e Caio não estivesse dormindo ao seu lado. Depois de tantos anos pensando naquele momento, definitivamente esse não seria o desfecho que ela teria proposto.

Em sua fantasia mais louca, eles finalmente se perceberiam loucamente apaixonador um pelo outro e se casariam. Teriam filhos. Dois. Um menino e uma menina. Ela sabia que brigariam pelos nomes, mas em algum momento concordariam em algo. Ou não.

Mas lá estava Caio e ela sabia que não se casariam. Não agora. Sequer estavam prontos para namorar, ou assumirem que se gostavam.

Caio era seu melhor amigo há tanto tempo e, ainda assim, eram incapazes de conversar de coisas sérias pessoalmente. Tudo que precisavam dizer um pro outro que fosse minimamente relevante era enviado por alguma forma de mensagem eletrônica. E ele tinha precisado dela na noite anterior.

Algo sobre coração partido. Ela, amiga incrível que era, levou seu ouvido, o ombro, os filmes favoritos dos dois e tudo que precisariam para preparar um Amnésia Nuclear, drink de escolha quando precisavam esquecer alguma coisa. Ou alguém. Ou tudo.

Pois tinha funcionado. De alguma forma, ela deletou tudo entre o último Rocky e o motivo para ela estar ali, nua, debaixo de seu edredom. Levantou uma ponta pra conferir se, sim, ele estava igualmente nu embaixo do mesmo edredom.

Em momento algum ela teve a chance de contar pra ele que estava na dúvida sobre uma proposta de emprego. Agora não estava mais. Era a coisa mais séria que já tinha precisado contar pra ele, grande demais pra mandar por qualquer mensageiro.

Decidiu deixar um bilhete.

"Caio,

Desde sempre fomos os melhores amigos que esse mundo já viu. Nunca conheci nessa vida um casal que tivesse relacionamento melhor que o nosso. Só nos faltou ser um casal. Nunca discutimos por nada sério, você sempre me entendeu e esteve do meu lado quando eu não queria que absolutamente ninguém me visse chorar ou ser fraca. E eu sempre estive lá pra te fazer perceber o quanto você era incrível.

O problema é que eu não sei mais como ser sua amiga. Porque eu te amo.

Desculpe. Não sei se essa é a melhor forma de te dizer, mas tampouco sei fazer diferente.

Percebi outro dia, enquanto você me contava sobre a Mariana, Marina, sei lá o nome dela, que eu não conseguiria mais ser seu ombro e te ver escolhendo elas, se arriscando com elas, quando eu estava ali, tão perfeita pra você, só esperando que você entendesse o que eu já tinha entendido.

Não podíamos mais ser amigos. Ou só amigos. Já éramos além.

E o que quer que tenha acontecido ontem me fez perceber que não posso mais estar perto de você.

Recebi uma proposta pra trabalhar em Londres e decidi aceitar. Ficarei um ano lá, a princípio, mas há a possibilidade de isso se estender indefinidamente.

Pensei em te contar ontem, mas você precisava de mim mais do que eu de você.

Eu te amo, mas não estou pronta pra te perder.

Então acho melhor assim.

Lu"

Ela deixou o bilhete em um lugar impossível de ser ignorado e foi embora. As malas já estavam quase todas prontas, antes de ir pra Inglaterra ela passaria uns dias na casa da irmã em Brasília. Esse detalhe ela omitiu intencionalmente. Não queria ter de vê-lo antes de ir.

Aquela carta era sua despedida.

Caio acordou e procurou Luisa na cama, com um sorriso que se estampou em seu rosto antes mesmo que ele abrisse os olhos. Ela não estava mais lá, mas ele achou a carta rapidamente.

Leu em voz baixa e apertou o papel dentro da mão enquanto disse pra si mesmo:

- Eu também te amo.