quinta-feira, 30 de maio de 2013

Ele

Chegou em casa especialmente irritada. Seu trabalho era estressante, mas aquele dia havia coroado uma semana complicada.

- Amor?

Pensou em reclamar com ele, mas não foi rápida o suficiente no gatilho.

- Beijo?

Ganhou um singelo selinho de oi, saudade de você típico de fim de dia.

- Você não sabe o que aconteceu no trabalho hoje.

Ele agora tinha turmas novas, depois de tanto tempo ensinando adultos a aperfeiçoar a pronúncia, ele passaria a pegar turmas de crianças bem pequenas. Um projeto novo do curso que ele foi escolhido pra liderar.

Além de ser um dos melhores professores da rede, adorava crianças.

A história era bonitinha, daquelas sobre alguma coisa que só pessoas bem inocentes conseguem protagonizar. Mas o mais bonito era ver seu olho brilhando ao compartilhar o acontecido.

- Já comeu?

Não. Tinha esquecido de comer. Merda. Quem esquece de comer, sabe? Coisa de gente doida. Gente que trabalha demais.

- Fiz seu favorito. Tinha tempo que não cozinhava isso pra você.

Além de tudo ele cozinhava. E sabia seu prato favorito. Foi uma das primeiras coisas que aprendeu. O que gostava de comer, sua cor preferida, as músicas, os livros, que preferia sapato baixo a botar salto e que trocaria qualquer balada pra sentar num bar e ver um jogo tomando uma cerveja bem gelada.

- Bota a mesa? Já tô terminando aqui.

Lavou as mãos e botou a mesa. Tinha tempo que não fazia isso. Desde sempre chegava em casa tão tarde que mal tinha tempo de sentar à mesa pra jantar. Comia qualquer coisa requentada no microondas sentada no sofá, de frente pra TV. Quando comia. Era normal simplesmente apagar no sofá com a TV ligada e o prato cheio apoiado na barriga.

Ela gostava de ouvi-lo falar. Contar suas histórias, seus dias. Seu mundo era tão diferente, tão mais leve.

Ao fim do jantar, quase tinha esquecido do dia horrível, da semana estressante, dos seus problemas.

- Deixa que eu lavo a louça, você já cozinhou.

- Certeza? Você tá cansada.

- Não, vai lá. Vai começar aquele documentário do George Harrison na TV. Já sento contigo, também queria assistir.

Tocou seu rosto com carinho. Ganhou um beijo na palma da mão em retorno.

- Te amo.

Ela sabia.

Sem nem saber, ele havia trazido pra vida dela toda uma rotina que a salvava de sua própria rotina.

Havia escolhido uma carreira tão naturalmente caótica que sua vida fora do horário comercial não poderia seguir o mesmo ritmo.

Mas só ao conhecê-lo finalmente entendeu.

Amor é calma.

Assistiram ao documentário.

Pela primeira vez em muito tempo iam deitar ao mesmo tempo.

- Amor, apaga a luz?

É. Não importavam as dificuldades.

Encostou a cabeça em seu ombro.

Finalmente.

Calma.

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