sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Ascensão e queda de uma nunca deusa

Calista sempre soube que havia algo de especial nela. Desde cedo reparava o quanto se destacava entre as coleguinhas, mas só ao completar 15 anos entendeu o por que. Seu pai era, na verdade, um deus.

Ela não sabia exatamente qual, já que sua mãe o havia conhecido em uma festa de Baco quando era bastante jovem e estava bastante embriagada na ocasião. Só podia ser Zeus. Parecia bastante óbvio a Calista que era seria uma herdeira do Olimpo.

Daquele dia em diante, a jovem imaginou infinitas formas de conhecer seu pai e se aproximar de tudo que acreditava ser seu por direito, mas muitos outros tentavam o mesmo diariamente. Chegava a ser difícil arrumar um namorado sem que o relacionamento configurasse incesto. Sua sorte era acreditar que nenhum homem da Grécia era digno de ficar com ela, o que facilitava um pouco essa parte.

Pois sua oportunidade de brilhar apareceu quando Hades e Demeter brigavam pela custódia de Perséfone. Para não ter de se meter na discussão, Zeus decidiu abrir a decisão para votação e, ao atingirem um impasse, perceberam que não havia quorum suficiente para resolver a questão. Como apenas deuses podiam votar e todos haviam escolhido seus lados, eles precisavam de novos deuses.

E então chegaram a um novo impasse.

Até que um dos mais jovens teve a ideia: promover um semideus. Eram muitos candidatos, eles sabiam quantas vezes as cercas do Olimpo haviam sido puladas, por isso seriam muitas tarefas a serem cumpridas, entre provas de múltipla escolha, discursivas, entrevistas com uma banca formada apenas pelos deuses originais, um show de talentos e algumas simulações para entender como cada um se comportaria diante de situações difíceis como o fim do mundo, os ciúmes de Hera, as crises de insegurança de Afrodite e algumas guerras entre mortais.

Calista estava se preparado para isso há quase 4 anos, ela sabia que era capaz de surpreender. O processo seletivo seria longo e árduo, mas ninguém merecia mais que ela. Além do mais, ela não aguentava mais ser vista como a filha do ferreiro. Era seu direito por nascimento e ela lutaria por isso.

Seu único problema, na verdade, era a falta de coordenação motora. Em provas como a de arco e flecha, ou a corrida com piras pelas montanhas, ela tinha grandes chances de perder pontos. Mas, da mesma forma que fazia nas aulas de educação física, ela sabia que poderia usar seu charme para achar uma saída. Incrivelmente, ela conseguia exercer sua influência sobre homens e mulheres.

E assim foi. Depois de longos 4 meses, Calista foi escolhida. Enfim ela não precisaria mais conviver entre os civis e poderia ser cultuada e existir entre seus iguais. Tudo estava certo e nem em seus sonhos mais incríveis ela poderia ter se imaginado tão feliz.

Despedir-se dos pais foi a parte mais fácil da ruptura. Arrumar as malas e garantir que absolutamente tudo fosse levado aos seus novos aposentos demandou muito mais atenção. Ali ela começou a tomar gosto pela recém adquirida posição. As pessoas pareciam se desdobrar para atender a seus caprichos e ela logo percebeu o quanto aquilo era delicioso.

Poucas coisas eram tão saborosas quanto o poder.

Uma de suas primeiras providências no cargo foi desempatar a disputa por Perséfone. Graças à sua influência, chegou-se a um acordo que resultou na divisão do ano em estações, de forma que Perséfone passasse metade do ano com o marido Hades e a outra metade com sua mãe Deméter. Todos felizes. No máximo, poderiam reclamar de uma eventual saudade, mas o resultado pareceu justo a todos os envolvidos. Exceto pra Perséfone, que claramente não se incomodaria se essa distribuição de tempo envolvesse alguns meses em ela pudesse ficar sozinha.

Depois disso, curioso, quase nenhuma crise se apresentou. A vida lá em cima era tranquila e quando não estavam em festa, bebendo e comendo como se não houvesse amanhã, a monotonia era tanta que ficou fácil para Calista entender por que seus colegas de profissão gostavam tanto de mexer com as cabeças dos mortais ou pregar peças uns nos outros. Não fosse isso, provavelmente morreriam de tédio.
E foi assim que ela mesma começou a aprontar das suas. Chegou até a gostar da ideia de se aproveitar de rapazes que antes sequer receberiam dela um olhar ou um sorriso. Agora ela estava muito acima deles e o poder podia ser bastante afrodisíaco. Era divertido vê-los todos apaixonados e sem a menor possibilidade de tê-la para si.

Tolos.

Calista acreditava ter encontrado a fórmula ideal para poder viver como deusa, até que, em uma das festanças do Olimpo, as coisas perderam um pouco o controle e ela conseguiu mexer com um dos homens de Afrodite e irritar Hera de uma só vez. Poucas combinações teriam sido tão nocivas.

Normalmente, o caso teria sido levado a uma corte, que analisaria as circunstâncias e determinaria um castigo levemente desproporcional. Algo como ter suas entranhas devoradas por abutres durante uma eternidade, mas suas vítimas exigiram seu banimento. Ela deveria ser jogada ao mundo dos mortais, sem seus poderes de deusa ou semideusa, condenada a ser somente uma mulher, sem nada de especial.

A única coisa que levaria consigo seria a lembrança de como era ser idolatrada.

Com a mesma rapidez com que se acostumou a ser especial lá em cima, ela sentiu na carne como era ser ninguém. Outras mulheres pareciam tão ou mais bonitas, magras, interessantes e cativantes quanto ela. Nenhuma delas parecia invejá-la, assim como nenhum dos homens parecia desejá-la.

A crise de abstinência bateu forte e logo, Calista não sabia por que existir senão para ser o foco da atenção de todos. Sentia-se mais fraca a cada dia que passava sem sentir que todos os olhares eram pra ela, ou desconfiar que era sobre ela que cochichavam.

Vagava pelas ruas de algum lugar que desconhecia até descobrir que todas as pessoas estavam na internet e era pra lá que ela deveria ir. Aprendeu rápido que precisava ter uma conta de Twitter, uma de Facebook, um Tumblr, e mais outras tantas redes em que contaria detalhes inúteis de sua existência para desconhecidos. Parecia bem fácil.

Ganharia pontos extras se postasse fotos suas sendo sensual, boba, feliz, triste, não faria tanta diferença desde que sua audiência a paparicasse e dissesse como estava linda naquela foto, ou em qualquer outra. Ela tinha de construir uma base de fãs para adorá-la por motivo algum. Afinal, quel era seu talento?

E assim surgiu @deusa_calistaa, uma garota inocente que gosta de tudo que você também gosta e mais algumas coisas assim pra manter o mistério quer me conhecer me add.

Ela era sorridente e simpática, dizia todas as coisas que todo mundo queria ouvir e fazia com que eles quisessem sempre mais do nada que ela oferecia todos os dias, a todo momento. Em pouco tempo ela se tornou a musa de uma legião não tão pequena de fãs que queriam ser seus amigos ou seguidores. Muitos ficavam absolutamente histéricos com uma simples interação.

Tudo estava dando certo pra ela. Até que um dia ela escreveu algo que não deveria.

"Aff Hera e Afrodite podem tentar, mas não vão me derrubar. Sambei na cara dessas recalcadas."

Foram tantos RTs que a mensagem deu seu jeito de chegar aos ouvidos das duas, que decidiram que o castigo dado à bastarda insolente não fora suficiente. Ela merecia algo mais definitivo.

Então Calista recebeu a visita de um mensageiro com uma convocação urgente para que comparecesse ao Olimpo para revisar sua sentença. Claramente haviam se arrependido e reconheceriam sua importância, pensou. Mal sabia ela o que a esperava.

Todos os deuses a receberam para a leitura de sua punição.

Daquele momento em diante ela seria privada da fala, de seus movimentos e da sua matéria. Passaria a eternidade sendo transportada para o lugar mais cheio da Terra naquele instante, onde poderia ver todas as pessoas passarem por ela sem poder enxergá-la, tocá-la ou conversar com ela, 24h por dia, todos os dias do ano.

Eles a concederam a imortalidade e deram as costas um por um.

E Calista passou a eternidade experimentando o que era ser ninguém.


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