quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Aurora

- Ora, ora, vejam só quem está de volta. 

- Sim. Eu sei, faz muito tempo. 

Dois anos, quatro meses e 15 dias, para ser exata. Mas a sensação de abrir o computador e conversar com a tela continuava absolutamente familiar.

- Você parece a mesma, mas está completamente diferente. 

- É o cabelo. Da última vez que nos vimos ele ainda era comprido. 

- Não. Não é físico. Talvez quase ninguém note, mas eu sim. Não consigo deixar de reparar. 

- Não sei do que você está falando. 

- Ah, mas é claro que sabe. É exatamente por isso que você está aqui, novamente diante de mim. 

- Tanto tempo e você continua parecendo enxergar além de mim, não sei porque ainda perco meu tempo. 

- Anda. Conta. Por onde você andou? Foi alguma coisa que eu disse?

- Não foi você. Era eu. Eu até tentei voltar antes. Mas não sei. Eu simplesmente não conseguia. Abria o computador, abria sua janelinha, ensaiava uma conversa, mas não sabia nem por onde começar. Me faltavam as palavras. Tinha medo de você me julgar. 

- Eu? Te julgar? E eu alguma vez fiz isso? Você sabe que não. E você sabe que esse não era o motivo. Você está aqui, mas de nada vai adiantar se você não estiver aqui de verdade. Anda. Me conta. 

- Não sei se estou pronta. 

- Você sabe que sim. Ou então teria seguido se escondendo. Não acha? 

- De novo, você está certa. 

- Eu sei. Então conta. 

- A verdade é que eu não estou mentindo. Eu realmente não sei o que aconteceu. Só sei que algo aconteceu. Naquele dia em que eu abri sua janela pela última vez, antes mesmo que conseguisse começar a escrever, ouvi meu nome sendo chamado. Parecia urgente. Não tinha nada marcado na minha agenda, meu chefe tinha decidido fazer uma rodada de feedbacks surpresa. Não lembro mais de toda a conversa, só de uma frase. “Você não serve pra isso”. 

- Nossa. Assim? À queima-roupa? 

- Talvez em meio a outras coisas. Mas é o que te disse. Acho que bloqueei o resto. 

- E aí? 

- Algo aconteceu ali. Na hora, não entendi. A ficha caiu outro dia. Sabe? Quando você olha pra trás, avalia tudo que passou e parece que está analisando a vida de outra pessoa? Acho que, depois de tanto tempo, finalmente a ferida cicatrizou. Eu estava lendo um livro, e no meio da história tinha uma personagem que falava sobre se partir em duas. Razão e emoção, cada uma vivendo em um plano. Mas razão sem emoção não produz arte, certo? 

- Certo. 

- Pois bem. A metade de mim que conseguia colocar em palavras escritas as histórias que se passavam em minha cabeça ficou naquela sala. Eu saí. Mas sem ela. Sem sangue derramado, mas não por isso sem dor. Foi um caminho produtivo até aqui. Não posso dizer que não. Fiz muita coisa. Estudei, escrevi artigos, não sei se leu algum, mas eram bons. 

- Não li, mas tenho certeza de que sim. 

- Provei que ele estava errado. 

- Sentiu-se vingada? 

- Queria dizer que sim, mas acho que não. 

- Por que? 

- Eu tinha a sensação de que tinha pagado um preço alto demais por aquele “sucesso”. 

- Mas agora você está aqui. 

- Sim. Eu acho que entender o que aconteceu me deu um certo conforto. Mas não saber o que fazer com isso, me dá uma imensa angústia. Será que consigo me reconectar com aquela parte de mim há tanto tempo trancada naquela sala? 

- O que você espera de mim? 

- Respostas? 

- Querida, eu sou apenas uma folha em branco. Eu sei que você ainda está com medo, mas acredite. O mais difícil você já fez. Agora pegue essas ideias que estão na sua cabeça e comece a escrever. Tome o tempo e o espaço que precisar. 

Ela encarou a tela mais uma vez, respirou fundo e se pôs a digitar. 


“Pois vou começar pelo fim: pelo dia em que eu segui sem mim." 

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