segunda-feira, 2 de junho de 2014

O cão

Eram 19h. André nem precisava olhar no relógio pra saber que eram 19h. Todo dia, naquele mesmo horário, religiosamente, era possível ouvir ao longe os latidos de um cachorro.

"O dono deve chegar em casa nesse horário",  ele sempre pensava.

Pois não eram 19h, mas 17:45.

- Ow, Jefferson! O cachorro já tá latindo! São nem 18h, cara...

- Aposto que o cara voltou pra casa numas de dar um Fla x Flu na mulher. Quer apostar quanto que ela tá botando chifre nele?

- Você viaja, hein?

- Beleza. Um dia a gente descobre onde é que esse cachorro late e descobre se eu não tô certo.

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Dona Zuleide era casada com seu Ayrton há quase 40 anos. Eles se conheceram no colégio e casaram assim que ele se alistou no exército. Tiveram 2 filhos, Paulo e Débora. Ele morava no Canadá, ela deu a eles o único neto, João.

Dona Zuleide fazia quentinhas pra fora, mas queria mesmo era ter estudado pra ser professora.

- Você já arrumou um marido, Zuleide. Vai fazer faculdade pra que?

Por quase 40 anos ela foi a esposa, a mãe e a avó. Mas nunca conseguiu ser a Zuleide.

- Mãe, arruma as coisas que eu te arrumo alguma coisa aqui no Canadá. Larga o pai, mãe. Faz tempo que tu não é feliz. Eu sei que tu ficou por nossa causa, mas eu e a mana já tamos grandes, ela tá até casada, com filho, tem nem porque tu ficar aí pra cuidar do pai.

Seu Ayrton nunca deixou faltar o pão na mesa, mas também nunca faltou um rabo de saia fora de casa. Era do tipo respeitador, mas só da porta pra dentro.

Da porta pra fora eram outros 500.

Dona Zuleide sempre soube.

- Casamento é assim, Zuleide. Você sacrifica algumas coisas pra ganhar outras. Pelo menos tu tem casa, teus filhos nunca passaram fome, estudaram em colégio bom. E vamos conversar que o Ayrton nunca te bateu, né? E ele é homem, é normal dar essas puladinhas de cerca.

O problema não eram as puladinhas de cerca. É que ele sempre teve tudo que ele quis e ela deixou tanta coisa de lado pra fazer aquela família feliz.

Ela só queria ser professora...

- Eu vou, meu filho. Deixa só eu aprender inglês...

Então Dona Zuleide conheceu Jorge, um rapaz da vizinhança. Jorge dava aulas de inglês num curso ali pertinho, mas era nas aulas particulares que ele conseguia uma graninha melhor pra poupança do casamento.

Maria Alice, sua noiva, era moça de interior, sempre sonhou com uma festa bonita, cheia dos primos, tios, amigos e pompa que ela via nas novelas e filmes. Jorge queria que ela tivesse tudo isso, mas o salário no curso nunca seria suficiente pra pagar pela festa.

Foi um amigo do vizinho do porteiro do curso que comentou com Dona Zuleide que Jorge dava aulas em casa e o mesmo amigo fez com que o vizinho contasse pro porteiro que ele sabia de alguém que precisava de um professor.

Dona Zuleide não tinha o dinheiro pra pagar pelas aulas, mas podia ensiná-lo a cozinhar e garantir a quentinha do almoço enquanto ele fosse seu professor.

E então, todas as terças e quintas dali pra frente lá estava ela, cada vez mais longe dali.

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Fazia 5 anos que Júlio tinha largado seu emprego de contador pra seguir o seu sonho: adestrar cachorros.

A vizinhança onde morava tinha os cãezinhos mais educados de toda a região e ele se orgulhava muito disso.

Orgulhava-se mais ainda do seu cachorro, Thor.

- Ele não late, né Júlio? - Perguntou certa vez sua vizinha, dona Zuleide.

- Late, claro que late, mas quase sempre só com o meu comando.

- Será que você poderia me fazer um pequeno favor?

- Claro, dona Zuleide, qualquer coisa pela senhora.

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- Quem é o rapaz que tá frequentando tua casa, Ayrton? 

- Que rapaz, Osvaldo? 

- Um rapaz, novo, alto, pintosão, vem aí toda terça e quinta no meio da tarde. 

- E eu sei lá do que você tá falando, Osvaldo? Não tô fazendo obra em casa nem nada, não tem porque ter um rapaz frequentando minha casa. 

- É... De repente eu me enganei. Sei lá. Achei que fosse na tua casa. De repente não é. Mande um abraço pra Zuleide. 

- É, você deve ter se enganado sim. Mas pode deixar que eu mando um abraço pra ela, pode deixar. 

Aquela conversa foi suficiente pra que Ayrton ficasse com a pulga atrás da orelha. Quem era o rapaz? Que rapaz era esse e o que ele estava fazendo na casa dele enquanto ele estava fora? 

Ele nunca foi o marido exemplar, ele sabia bem disso, mas Zuleide não sabia. Sempre teve muito cuidado pra esconder bem suas coisas, o que acontecia fora de casa não tinha nada a ver com ela. 

Ela era sua esposa, mãe dos filhos dele, não era como as outras. As outras eram as outras, eram só diversão. Ela era coisa séria. 

Mas talvez ele não tivesse sido tão discreto assim. E, se ela soubesse, ela podia estar querendo se vingar. 

Será? Será que Zuleide seria capaz de se vingar? Pior, seria ela capaz de traí-lo? E com um garoto mais jovem, ainda por cima? 

Não, claro que não. 

Por uma semana Ayrton chegou em casa pra encontrar sua janta pronta, o pijama e os chinelos separados, como sempre, mas não conseguia parar de pensar no tal homem que Zuleide estaria recebendo em casa. 

Na casa dele, ainda por cima! 

Pelo menos ele teve a cortesia de fazer tudo fora dali, afinal ele respeitava aquele casamento.

Até que ele não aguentou mais. 

- Seu José? Eu posso falar com o senhor? 

- Claro, Ayrton, entre. Puxe uma cadeira. 

- Obrigado. O senhor sabe que eu não sou de faltar, não é mesmo? Nem de sair cedo, aliás, eu chego cedo! E vou embora sempre depois do horário. E eu não estou reclamando, de jeito nenhum, é que eu preciso ir embora um pouco mais cedo hoje, porque...

- Mas é claro, Ayrton! Tá tudo bem com você? Eu posso te ajudar em alguma coisa? 

- Não, não, tá tudo em, é que eu só preciso resolver um probleminha em casa, não é nada demais, é só um probleminha. 

- Bom, se você precisar de alguma coisa é só você me dizer. Qualquer coisa, você me diga! 

- Muito obrigado, muito obrigado mesmo, seu José. 

Ayrton pegou um táxi e voou pra casa. Era bem naquele horário que Osvaldo tinha comentado que o safado estava lá. Devia estar lá agora, fazendo sabe-se lá o que com sua mulher, desgraçado. 

- Toma, tira 20 aqui, fica com o troco. 

17:45, rapidinho. Com certeza ele ia pegar o infeliz com a mão na massa. 

- Opa, boa tarde seu Ayrton. Thor, shh. Thor! Para de latir, Thor. 

- Boa tarde, Júlio. Você me desculpa, eu não tô podendo conversar. Seu cachorro tá agitado, né?

- É, eu não sei o que tá acontecendo com ele. Ele não é de ficar assim. THOR! SHH! 

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- Mas esse cachorro do vizinho hoje tá nervoso, né? 

- Pega as coisas, Jorge, vem, deve ser meu marido. 

- Como assim seu marido, dona Zuleide? 

- Demorou até pra ele desconfiar. Algum fofoqueiro deve ter contado que você tava vindo aqui...

- E a senhora sabe disso pelo cachorro? 

- Digamos que eu tenha um acordo com o vizinho, eu te explico outro dia, agora sai pela porta dos fundos. 

- Tá, a gente continua outro dia! 

- Sim, sim... Tchau, obrigada! 

- Zuleide? Zuleide? 

- Aqui, Ayrton, tô na cozinha. Chegou cedo, né? Tá tudo bem? 

- Tá, tá tudo bem. Tá sozinha? Ouvi você conversando...

- Tava no telefone com o Paulinho, ele acabou de desligar. 

- Ah... Que cheiro bom aqui, né? Tá cozinhando? 

- Tô, tô sim. Tava preparando uma surpresa pra você. 

- Ah, é? E é o que? 

- Coffee cake. 

- Ó que chique. E o que é isso?

- É tipo bolo normal, mas é em inglês. 

- E desde quando você fala inglês, mulher? 

- Desde nunca, falo inglês nada, só faço bolo. Quer? 

- Eu quero. Tem café? 

- Eu passo agora pra você. Quer? 

- Quero. Vou só dar uma olhadinha na casa, eu juro que ouvi um barulho esquisito... 

- Deve ser só o cachorro do vizinho, mas vai lá. Vou fazer teu café e cortar o bolo. 

- É... deve ser. Cachorro doido...




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